Rezar em Auschwitz
Há momentos tão fortes, de recolhimento e espiritualidade, que o tempo parece que se suspende, como que procurando também o significado do instante.
Revejo Francisco a caminhar sozinho, entrando pela sinistra porta de Auschwitz (Arbeit mach Frei) e acentuando ainda mais a fragilidade da sua pessoa ao percorrer, sem acompanhantes, esses lugares da morte do campo de concentração nazi.
Que pode pensar nesses momentos um homem como ele, interlocutor diário de um Deus bom, perante a imensidão da tragédia?
Acudir-lhe-ão as mesmas perguntas de todos nós e que o recém-falecido Elie Wiesel plasmou de forma sublime: como foi possível? Como foi possível?
Só o Papa sabe da sua conversa com Deus.
Guerra sem nome de guerra
Um mundo em conflito, em guerra mesmo – diz o Santo Padre. Não entre religiões, adverte, apesar de alguns se esforçarem por o fazer crer, mas na competição por poder e dinheiro. O perfume inebriante do poder… e o poder que vem do dinheiro…
O Papa não terá sido a primeira pessoa a caracterizar assim o nosso tempo, mas empresta-lhe agora o tom da sua autoridade moral, quer dizer, da sua observação e análise cuidadas, à luz de princípios que têm a ver com todos nós, na nossa humanidade.
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O mundo vive em estado de guerra. E de repente tudo faz mais sentido. A análise parece simplista mas não é. Ela resume de facto bibliotecas inteiras de Ciência Política e Relações Internacionais.
Porque quando o Papa Francisco fala de poder e dinheiro não evita falar das estruturas injustas do sistema económico mundial, elas próprias definidoras da relação de forças entre países. E do impacto social distorcido do crescimento económico, à escala do planeta.
Parafraseando a revista Forbes: os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres.
O Papa intervém naturalmente no debate, não para condenar este ou aquele país específico – porque não se trata das escolhas económicas de um só país – mas para apelar à reorganização da economia mundial, suas regras e suas prioridades, de modo a ser geradora de uma redistribuição mais justa, mais equitativa de recursos, num quadro de desenvolvimento para todos.
E falando de coisas concretas e reportando-nos ao momento que se vive, será interessante analisar, por exemplo, na campanha presidencial americana em curso, qual o lugar destas preocupações nos discursos dos dois candidatos rivais, já nomeados pelas convenções nacionais dos seus respectivos partidos.
De que poder fala cada um deles, e para quê? Para tornar a América mais forte, contra o resto do mundo? Para a isolar, a pretexto do terrorismo, de quem é étnica e culturalmente diferente, numa América já de si tão diversa? Ou para compreender o mundo, estar com o mundo, e ajudar a construir, pelo contrário, um sistema internacional mais solidário?
Que diz Hillary Clinton da sua agenda social que tanto se orgulha de ter promovido, com tão poucos resultados aliás? Entre o pendor da aliança com os grandes interesses económicos e a voz dos pobres, para onde se inclinará o seu sentido não só da oportunidade, mas da História?
Que atenção dará, se for eleita, às preocupações anti-sistema do eleitorado democrata que preferia Sanders?
E da truculência de Donald Trump, o que se pode retirar para futuro, quanto ao uso do poder americano, se a sorte e a contagem de votos o viessem a colocar no gabinete oval, para desilusão e preocupação de milhões de americanos e do resto do mundo?
Estas questões não são despiciendas, pois os Estados Unidos ocupam ainda o primeiro lugar da economia mundial e das despesas militares globais – e seria estulto negar, desde logo por esse duplo facto, a sua influência no mundo.
A atitude para com o mundo exterior do próximo Presidente americano será pois fundamental para criar novas oportunidades de cooperação com os outros países; ou, pelo contrário, para construir uma América-fortaleza que, a pretexto de defender os seus interesses, provocará tanto mais instabilidade, quanto mais se sentir ameaçada.
A distorção populista da ameaça é sempre uma arma perigosa.
Cooperação, o “novo” nome da paz
E já que nas Nações Unidas se discute a sucessão de Ban Ki-moon, será oportuno ligar esse novo ciclo da existência da ONU aos próximos cinco ou dez anos da vida internacional, onde os membros permanentes do Conselho de Segurança serão chamados ao consenso mínimo necessário para revitalizar o papel da organização, em benefício de todos.
Revitalizar a ONU será o terem os cinco a vontade política das reformas. E consolidarem as múltiplas vias da cooperação multilateral, dando por essa via força e credibilidade aos instrumentos de coexistência pacífica e de entreajuda que eles próprios (e os restantes Estados membros) criaram.
E facilmente se compreende que os cinco membros permanentes do CS têm hoje, mais do que em épocas recentes, consciência de que não podem fazer navegar o grande navio do mundo com piloto automático, mas com uma cuidadosa navegação à vista, tantos os escolhos na rota para o futuro. Escolhos que fazem o Papa Francisco alertar para o facto de que «a guerra hoje não tem o nome de guerra».
Todos em Notre Dame
A sucessão de atentados terroristas em França terá feito François Hollande e o seu Primeiro-Ministro, Manuel Vals, compreenderem melhor que o chamado Estado laico ou Estado secular, neutro do ponto de vista das crenças dos seus cidadãos, não pode governar de cima a sociedade, pois carece da colaboração estreita das confissões religiosas e das suas organizações para assegurarem a paz civil e a coesão social.
Pela simples razão de que o sentimento de identificação e fidelidade primárias da população situam-se ainda hoje muito mais nas convicções religiosas e no sentimento de pertença cultural/comunitária (a “identidade”), sobretudo entre as minorias, do que na adesão, um pouco abstracta, aos tão proclamados ideias republicanos.
Jeová e seus Mensageiros; o Deus cristão e seu Filho Jesus; ou Alá e o seu Profeta, estão mais próximos do coração de todos do que a deusa Razão e os ideais revolucionários de 1789.
É assim e não é de outra maneira, para desespero dos defensores gauleses da sociedade sem Deus.
Daí Hollande ter reiterado o pedido de colaboração às autoridades religiosas de todos os cultos, na que é a nova cruzada contra a erosão do tecido social, numa França que se quer plural mas solidária, diversa mas unida no essencial.
Se tal for conseguido, essa será uma importante derrota para os jihadistas, repitam estes ou não os ataques como o que vitimou já tantos, como em plena missa o sacerdote de Rouen.
Carlos Frota
Universidade de São José