A tranquilidade do Mekong e as ruínas de Champassak
Ao sul, repousando nas margens do Mekong, ensombrado pelas colinas, deparamos com as ruínas de Champassak, as únicas ruínas khmers existentes no País.
Tudo que restava da outrora esplendorosa cidade de palácios eram fileiras de palhotas de bambu erguidas ao longo do rio, algumas casas coloniais vermelhas de pó e pouco mais. “O palácio do rei está reduzido a um conjunto de choças rodeadas por uma paliçada”, admirava-se Francis Garnier, explorador francês do século XIX. Dos símbolos do poder de outrora restam apenas “uma corbelha, um jarro para água e um escarrador em ouro”.
A propaganda do regime da altura assegurava que o último soberano de Champassak, Boun Oum, fora um tirano obeso e corrupto que sempre pactuara com o poder colonial. Em frente ao casarão de Boun Oum, a casota do guarda estava vazia e do espólio do interior da residência restava apenas uma enorme cama chinesa, um guarda-loiça anos quarenta, um cântaro e pouco mais. Essa era toda a mobília que restava dos descendentes do príncipe.
Mais a sul, para lá de Pakse, junto à fronteira com o Camboja, o Mekong, “celeiro da nação”, ramifica-se em treze braços, como os das deusas da mitologia hindu. Durante a monção esta rede fluvial transforma-se num verdadeiro mar com uma extensão de cinquenta quilómetros por catorze de largura. É essa a época favorita dos golfinhos de água doce, os denominados “golfinhos do Irawaddy”. Chamam a esta região Si Phan Don, “as quatro mil ilhas”, já que funciona como uma espécie de delta interior onde o grito da passarada e a algazarra das crianças nuas que se banham nas margens do rio são os sons de maior destaque. Mas Si Phan Dan é um delta interior bastante peculiar. Tem as quedas de água de Khone-Phapeng, as maiores do Sudeste Asiático e que constituem uma barreira natural à navegabilidade do Mekong.
A única locomotiva existente no País, que outrora fazia a ligação entre as inúmeras ilhotas disseminadas pelo Mekong, repousava numa clareira a enferrujar. Os carris foram aproveitados pelos habitantes locais para outras funções mas a ponte ainda lá está a testemunhar o primeiro e único troço ferroviário do Laos: o senhor Van Dy que de 1927 a 1940 conduziu a locomotiva, à velocidade de um quilómetro por hora, ao longo dos oito quilómetros de carris. Trajava então uniforme azul e ganhava piastras de prata. De 1941 a 1947 o invasor tailandês obrigou-o a fazer o mesmo serviço sem lhe pagar um tostão. Desactivada depois de 1960, a estação de Khon permanecia até então a única gare do Laos.
FUGA ÀS ORIGENS
Ao decidiram começar a tapar com tijolos as partes inferiores das suas casas tradicionais, que dispõem de um sistema de ventilação natural, os laosianos encetaram um ínvio caminho com um destino final pouco recomendável. Há menos de um século os senhores coloniais franceses fizerem o mesmo e foi o que se viu: a humidade deu-lhes cabo do sistema e mandou-os embora da Indochina. As suas antigas moradias encontravam-se em ruínas, a caírem aos pedaços e os novos inquilinos eram agora os ex-empregados de estaleiro e as antigas governantas que faziam a comida e tratavam do menino do branco.
Materiais de outros inquilinos mais recentes e mais invasores passaram a ser acessórios que compunham o novo espaço familiar. Era o caso das lagartas dos tanques norte-americanos fazendo as vezes de sebes no jardim e os vários invólucros de bombas a servirem de vaso para plantar as flores.
A versão novo-rico por estas bandas era mais vietnamita do que chinesa, o que é dizer, mais pórtico e varanda greco-romana e menos ladrilho e vidro reflector. Nos edifícios governamentais a propaganda ao regime, através discursos intermináveis, era feita, tal como na China de outrora, através de altifalantes logo de manhã cedo.
Nas “guest-houses”, colados junto às habituais fotos de chalés suíços em paisagens pré-montadas, diversos cartazes alertavam para o perigo da SIDA. Havia-os bastante interessantes. Como aquele que nos mostrava um homem de fato e gravata, posando por detrás de uma cerveja, e uma mulher com um copo de sumo de laranja na mão, a condizer com a rosa e a vela acesa colocados na mesa onde ambos estavam sentados. O preservativo, o objectivo primordial da mensagem, esse, era quase imperceptível. Outro cartaz, bem mais explícito, mostrava-nos um preservativo a cavalgar um tigre! (Ligação que até tem a sua lógica se associarmos o animal à capacidade sexual).
UMA VIZINHANÇA GULOSA
Entre o Norte e o Sul do Laos não eram visíveis grandes diferenças. Só que a sul as equipas de engenheiros e operários vietnamitas construíam mais estradas, mesmo durante a noite, equipados com fatos de macaco azuis e capacetes Hanói verde-escuro. Eram as formigas na casa da cigarra.
República Democrática do Laos era, desde 1975, o nome oficial deste país que, de modo informal, pode ser chamado simplesmente Laos – na língua oficial, “Pathet Lao”. “Pathet”, derivado do sânscrito “pradesha”, significa terra ou país.
O Partido Popular Revolucionário do Laos, no poder, foi modelado com base no Partido Comunista vietnamita, e as suas acções eram supervisionadas pelo congresso dessa organização política que acontecia cada quatro ou cinco anos e no qual se elegiam os dirigentes. Na prática, o politburo, o comité central e o secretariado permanente eram supervisionados pelo Primeiro-Ministro, um cargo apoiado pelos vietnamitas desde 1940. A Constituição laociana formalizava o comércio privado, apoiava o investimento estrangeiro, mas, curiosamente, não fazia qualquer referência ao Socialismo quando abordava o sistema económico.
Afinal, o panorama que não mudou muito desde a passagem de Fernão Mendes Pinto, que chamava a atenção para as aldeias com “quinze ou vinte casas de palha e de gente muito pobre que naquela terra se não sustenta de outra coisa senão de matar lagartos e de fazer dos fígados peçonha”.
Outro viajante da altura, o dominicano Gaspar da Cruz, descrevia ao pormenor essa “gente não muito baça”, destacando o facto de trazerem na cabeça por baixo “toda uma roda tosquiada e o demais cabelo escarrapiçado para cima, levantando-o muitas vezes para o ar com as mãos, que lhe fica com em lugar de barrete, porque não trazem nada na cabeça; andam nus da cinta para cima e das coxas para baixo, trazendo uns panos de algodão cingidos e todos brancos; as mulheres trazem cobertos dos peitos até à perna; têm os rostos um pouco achinados; têm as mesmas gentilidades que os pegus, e siões e cambojas”.
Na verdade, e essa é uma realidade incontornável, as fronteiras têm o Laos literalmente entalado. E contra essa fatalidade geográfica não há grande coisa a fazer. Em termo de afluência turística e de motociclos ruidosos parecia-me, na minha opinião e depois de passar duas semanas no País, que o Laos tinha azar ao conviver lado a lado com a Tailândia. Mais. A desgraça do Laos era ter a Tailândia como vizinho predilecto. Mas olhando bem, os outros compadres não eram muitos melhores. Os chineses metiam o nariz nos negócios do ópio, enquanto o Vietname lhe extorquia todas as árvores de grande porte e os animais ameaçados de extinção com um atrevimento incrível. E nesse domínio o Vietname, todo ele, sorrisos, servia apenas de intermediário para um patrão bem mais guloso e ambicioso: a sempre atenta e paternal China. Restavam o Camboja e o Myanmar.
Joaquim Magalhães de Castro