Estado clínico da violência global
Este é um assunto demasiado ambicioso – já se vê – para os estreitos limites de uma crónica. A sua invocação, não obstante, resulta da ideia simples (simplória, talvez…) de que falar sobre temas complexos, como este, é já uma recusa à indiferença e portanto à aceitação da sua inevitabilidade.
Como em tudo, a resignação é a pior doença social, dos povos e dos seus líderes. A indiferença é uma recusa, à partida, à possibilidade de progresso, no desenvolvimento humano global, expresso nas opções morais de cada época e nas instituições da sociedade em geral.
Fome no mundo: a tolerância zero
O Papa Francisco foi visitar há dias a sede do Programa de Alimentação Mundial, em Roma, instância que, sob a égide da FAO, coordena a distribuição da ajuda alimentar pelas zonas mais carenciadas do planeta.
Como dizia o Santo Padre na sua intervenção, é preciso lutar contra a banalização, a normalização da fome, que é vista aliás como uma forma de violência brutal contra os mais pobres. O mesmo se pode dizer da violência mais generalizada, em todas as suas formas e à escala global.
Argumentos tais como “sempre foi assim”, a “natureza humana é assim”, “há características da espécie que não se podem erradicar completamente” – todos estes são argumentos derrotistas. E que não prestam sequer justiça a todos os esforços que a Humanidade vem fazendo, lutando para pôr termo às mais variadas formas de discriminação, aos preconceitos que lhes dão justificação e sustento, no plano intelectual; e aos sistemas sociais que consagraram tais condutas discriminatórias como normas habituais de comportamento.
A continuar historicamente o combate contra a escravatura e a guerra civil a que deu origem na América de há dois séculos, segue-se como herdeira a luta contra um inimigo, mais insidioso do racismo, com as campanhas a favor dos direitos cívicos das minorias étnicas, como os afro-americanos nos Estados Unidos.
Nem Obama resolveu o problema! – dizem os que identificam os inúmeros actos de violência policial contra jovens negros, num país liderado afinal pelo primeiro afro-americano da sua História.
Um mundo doente…
Dizer que o nosso mundo está doente é imagem que, por ser tão utilizada e por ser tão genérica, perdeu praticamente utilidade. Não passa assim da expressão de um estado de espírito do observador, propenso ao pessimismo, em vez do princípio de um caminho de analise, séria e útil.
Está doente o mundo, mas de que enfermidades? Quais as causas específicas de cada uma delas? Estas são perguntas imediatas, tentando trazer para o terreno do concreto, e se possível da acção corretora, aquela formulação geral.
Privilegio hoje, atentos os limites desta crónica, três ou quatro dos males sociais, para os quais as notícias das últimas semanas nos chamaram particularmente a atenção.
A Religião como pretexto
A primeira forma de violência é a que hoje assistimos, impotentes, a desenrolar-se perante os nossos olhos, em todos os teatros de conflito. Pensamos logo, porque a actualidade o impõe, na Síria, na Líbia, no Iémen. E perante tais situações ou equivalentes, podemos dizer sempre que se a origem da violência pode estar em conflitos do passado, que não foram resolvidos na História dos Povos, a sua perpetuação ou ressurgimento nos nossos dias não pode resultar senão do insucesso das lideranças políticas em pôr-lhes fim.
Raramente os líderes podem ser desculpados, por estarem a lidar com forças que não controlam. Se não controlam essas, controlam as que podem opor-se-lhes. É o caso, do meu ponto de vista, da forma como Assad consolidou a sua posição, criando ou ajudando a criar a coligação de forças que lhe têm salvo o regime e o poder.
As lideranças têm três atitudes em alternativa: ou fazer tudo para pôr cobro ao conflito, negociando os termos de uma solução que proteja a população civil, sempre vulnerável e sempre inocente, mesmo se o preço da solução for a partilha do poder, como expressão de uma sociedade mais inclusiva.
Ou, como segunda alternativa, fazer tudo para se manter no poder, com ou sem partilha, subalternizando as consequências humanitárias insuportáveis do prosseguimento do conflito a tal lógica de perpetuação do regime. O caso sírio é um bom exemplo.
Ou, finalmente, optar pelo aparente fim das hostilidades, mas prosseguindo-as de facto de múltiplas formas, congelando provisoriamente o foco principal para o reacender, quando convier, como é o caso da Ucrânia.
Nestes e noutros casos, como o das organizações radicais, a religião é pretexto para a tentativa de reescrever a geopolítica de uma região ou do mundo. Mas em tais lutas o predomínio étnico não está ausente, e normalmente são minorias no poder que lutam contra maiorias dele afastadas, o que é claramente a situação da maioria sunita da Síria.
A falta de identidade como motivo
A não identificação do indivíduo com os valores, as práticas, até as aberturas e as oportunidades da sociedade que o acolhe, vem sendo cada vez melhor conhecida e estudada como potencial geradora de violência que um conjunto de circunstâncias favoráveis pode converter em tragédias de larga escala pelo número de vítimas e pelo impacto social, sobre o grupo minoritário em causa e sobre a sociedade em geral.
As falhas da integração social são pois tema que está associado, de forma corrente, nas sociedades plurais, à questão da desigualdade económica, como argumento de exclusão e de perpetuação da exclusão. As facilidades de recrutamento pela Internet de jovens desinseridos nas sociedades ocidentais são hoje melhor conhecidas.
Futebol e Violência
Concluo (?) com a violência no futebol.
Atingiu o máximo de severidade – que aliás aplaudo – a ameaça da UEFA à exclusão, dos restantes jogos do Euro 2016, das equipas a que se liguem bandos de apoiantes que estão na origem da violência, perpetrada em várias cidades francesas.
Estiveram principalmente na mira, como se sabe, ingleses e russos, mas outras claques poderiam juntar-se-lhes, porque a violência associada ao futebol não é exclusivo de nenhum país, nem de qualquer região do globo.
O fenómeno é universal e é esse que importa analisar. Não sendo um assíduo seguidor nem sequer dos jogos no nosso campeonato nacional, sempre me custou perceber as razões da rivalidade quase doentia entre os clubes principais, os maiores, da nossa Primeira Liga, que a disputa do título máximo não justifica completamente.
A rivalidade clubista doentia não tem nada a ver com o desporto, nem muito menos a organização de bandos treinados na prática sistemática da violência.
Se o fenómeno é universal, mais uma razão para o estudar e para o erradicar, com base nos seus resultados.
Carlos Frota
Universidade de São José