Perguntas e respostas.
Foi quase uma “decepção” para os especialistas em vaticanologia (que termo!) a Exortação Pastoral Alegria do Amor. Os conservadores aguardavam a oportunidade de beliscar o chamado liberalismo do Papa. Os progressistas aguardavam a confirmação das suas teses da “nova normalidade”. Os inimigos da Igreja perguntavam-se como se sairia o Papa desta embrulhada, esquecendo que Francisco não está onde está para fazer uma carreira mediática e manter o nível de popularidade que os diversos barómetros atestam. Quanto aos milhões de seguidores de Jorge Mário Bergoglio, esses esperavam com confiança.
A tripla chave deste texto-guia, intitulado Alegria do Amor, é: pensem, perdoem, amem.
E à mulher adúltera Ele disse: «– Eu também não te condeno. Vai e não voltes a pecar».
Negação por fim do juridismo canónico autoritário? Conforme uma das correntes do tradicionalismo cristão, ao Deus juiz severo corresponde o império da Lei. Que condena e pune.
Tal tradição esconde a outra face do Crucificado, voltada para o bom ladrão, no seu arrependimento do último minuto: ainda hoje estarás comigo no Paraíso.
É este Deus-da-última-oportunidade que interessa a milhões. A quase todos afinal.
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Perguntas do mundo à Igreja e respostas da Igreja ao mundo. Nunca este diálogo foi tão solicitado e tão esperado. Nunca católicos (e mesmo não católicos) estiveram tão atentos – e tão informados – sobre o papel da Igreja na sociedade.
Jornais e revistas enchem as suas páginas com noticiários sobre a vida da Igreja, com seriedade umas… e desejo de sensacionalismo outras, já que vivem disso. E a própria Igreja chama a si, cada vez mais, as novas tecnologias da informação, para não adiar ainda mais o diálogo com o mundo, através da Internet e das redes sociais.
Isto contraria os que gostariam de ver uma Igreja irrelevante, porque silenciosa. E , pelo contrário, dá novo alento a quem vê a Igreja como Mãe e Mestra, para usar o título da Encíclica de João XXIII.
E isto é assim, não só porque a extrema facilidade das comunicações instantâneas abateu completamente as barreiras geográficas, como a complexidade crescente da própria sociedade (e os desafios que tal complexidade encerra) tornam mais premente a necessidade do esclarecimento de posições, para os milhões de crentes que esperam conselho e orientação.
Uma potência para o bem
Os que gostam de ver tudo sob o ângulo da política dirão que a Igreja Católica é assim uma grande potência espiritual no mundo. Equiparável do ponto de vista do poder às potências laicas com quem competiria.
Apesar da ficção jurídico-internacional da Santa Sé como Estado soberano, não é assim que os católicos vêm a sua Igreja, pensando mesmo que tal violaria a razão de ser da Instituição, velha de dois mil anos.
Mas no interior da própria Igreja há aqueles a quem importa quase tanto a Instituição como a Mensagem, pelo que conservar intacta a estrutura de poder é essencial para garantir um grau elevado de influência moral da Igreja sobre a sociedade. Dirão mesmo esses que sem tal estrutura de poder a Mensagem não pode ser transmitida…
Este é um grande debate no interior da Igreja que data do momento em que se acentuou o movimento de separação da Igreja e do Estado.
Mas donde vem a grande esperança que milhões depositam hoje na palavra da Igreja? Terá isso a ver com a “superstar” mediática em que se tornou o actual Papa, como acontecera já com João Paulo II? Ou tal expectativa radica em algo de muito mais profundo?
O “efeito Francisco”
E já noutro plano mais questões se encadeiam: será o Papa Francisco a fonte do actual e renovado interesse pelo Cristianismo no mundo – e não apenas pelo Catolicismo? Poderá ser o Papa, como figura congregadora, uma resposta à fragmentação do Cristianismo? Que está em si mesmo a viver um processo interno de ajustamento doloroso às sociedades, em todas as suas denominações, dos ortodoxos às diferentes formas do protestantismo histórico? Tornando mais susceptíveis de divisão as questões sociais que enfrenta, desde o estatuto da mulher na Igreja à própria sexualidade?
Ninguém tem instrumentos de análise segura – neste mundo banhado pelo positivismo, de “cientismo” em tudo – para dar uma resposta definitiva em qualquer sentido.
Intuitivamente diria que o mais profundo do homem se exprime nessa adesão à figura do Papa. E eu faria resumidamente aqui uma “shortlist” das grandes questões mobilizadoras em torno da presença do Pontífice (literalmente: o que constrói pontes). Uma lista de preocupações do tamanho do mundo, afinal:
I – As grandes desigualdades económicas e sociais, num mundo geralmente próspero, como nunca antes na História.
II – As grandes questões éticas, num mundo marcado pelo relativismo dos valores e os estilos de vida.
III – A resposta ao desejo profundo de espiritualidade que reconcilie o ser humano – que aspira ao absoluto – com a sua condição mortal e por conseguinte transitória.
IV – A forma de construir um futuro no mundo, em que a pluralidade das civilizações e culturas não seja impeditiva da paz e da harmonia entre os povos. O que significa aceitação, tolerância e respeito mútuos.
As respostas
Quanto às grandes desigualdades económicas e sociais, que sistema económico é este? Perguntam-se os deserdados de todo o mundo, que também lêem como toda a gente que os paraísos fiscais existem, para os ricos serem mais ricos?
E que pode o Papa fazer senão estimular um debate sobre o uso da economia, como promotora do bem comum para o maior número, reiterando assim a Doutrina Social da Igreja sobre as grandes questões económicas do nosso tempo?
Quanto às grandes questões éticas, num mundo marcado pelo relativismo dos valores e os estilos de vida, sabe-se que o vale-tudo nunca satisfez ninguém, e que alguém se aproveita sempre dos espaços vazios.
E quem dá resposta ao desejo profundo de espiritualidade que reconcilie o ser humano – que aspira ao absoluto – com a sua condição mortal e por conseguinte transitória?
Reconstruir a teia de diálogo e partilha entre os grandes sistemas de crenças e práticas religiosas, por exemplo, o que é também uma forma de construir um futuro no mundo, em que a pluralidade das civilizações e culturas não seja impeditiva da paz e da harmonia entre os povos. O que significa aceitação, tolerância e respeito mútuos.
A Alegria do Amor
Voltando à Exortação que conclui o trabalho do Sínodo sobre a Família, o texto reenvia hierarquia e leigos a um trabalho de reflexão sobre a realidade de cada caso, com um apelo ao não julgamento condenatório, mas de aceitação e inclusão, quer se trate do caso dos divorciados ou de outras situações.
Decepção para alguns? Mas a maior revolução não é, afinal, a que se opera na consciência individual e colectiva?
Carlos Frota
Universidade de São José