Uma aula em Belém
Poderia parecer (digo-o ironicamente, claro) que recebi comissão para fazer eco – e dizer bem… – do que se passa no Palácio de Belém! Até porque admiração e elogio são “mercadorias” bem mais raras do que o cinismo e a reserva habituais… Pois bem, aposto no elogio que aqui só é apreciação justa. A propósito de quê?
A propósito de mais uma iniciativa muito interessante que o portal da Presidência da República divulga e é a do convite dirigido a Mário Draghi, o presidente do Banco Central Europeu, para falar aos conselheiros, a 7 de Abril, sobre a situação económica e financeira europeia.
Muitos imaginam o Conselho de Estado como um respeitável clube restrito (o que certamente é), composto de respeitáveis individualidades (idem), à disposição do Presidente, para serem ouvidos, por imperativo constitucional, em situações reputadas graves ou necessárias pelo Chefe de Estado.
Nele tomam assento os titulares dos órgãos de soberania (onde saliento a presença do Primeiro-Ministro), os deputados designados pelos partidos políticos com assento parlamentar, os antigos Presidentes da República e personalidades da sociedade civil, escolhidas pelo próprio Presidente.
Órgão fechado, discreto pela sua própria natureza, o Conselho de Estado é também um quadro onde vozes qualificadas do mundo institucional e da sociedade chegam ao Presidente, ajudando-o a decidir de forma a mais fundamentada possível, quando julgue necessário.
Ao “abrir” o Conselho à exposição de uma personalidade com o relevo e a importância de Draghi, o Presidente dá a possibilidade aos seus conselheiros de beberem na fonte o quadro de perspectivas para a evolução provável da Europa, tal como uma das suas mais importantes instituições o traça – contexto no qual terão de ser tomadas decisões capitais para as políticas do Governo, para a estabilidade do Executivo, e para o modo como, em cada momento, se exerce o poder presidencial, de acompanhamento, de persuasão discreta, de influência enfim.
Só como nota lateral, saliento a presença no Conselho de Estado do presidente do Tribunal Constitucional, órgão que arredado da acção política corrente se revela um actor político muito importante, num quadro de crise, como ficou demonstrado na vigência do Governo de Passos Coelho.
De Belém a Tires
Excepto no antigo regime português, onde a visibilidade do Chefe de Estado estava associada a inaugurações de obras públicas ou actos dessa natureza, não me consta que algum Presidente da República em Portugal tenha ido visitar penitenciárias. Dispenso-me de fazer qualquer pesquisa nos arquivos dos jornais sobre isso, porque não é isso o mais importante aqui.
Mais rigorosamente: ir visitar presos, como tais. Isto é, como cidadãos privados de liberdade, por crimes cometidos, subtendo-se, por isso, ao que a sociedade estipula como retribuição, para que possam reintegrar a vida normal das comunidades.
Ou então, sendo tais iniciativas da esfera dos Governos, por traduzirem resultados de políticas sectoriais, é quase certo que Primeiros-Ministros e ministros da Justiça se tenham encarregue de gerir tais iniciativas, a seu favor, o que aliás é compreensível, aceitável e até justo, no plano político.
Mas o nosso Presidente fez mais e fez diferente.
No contexto da Páscoa que se celebrou, foi visitar a prisão feminina de Tires. E fez-se acompanhar, sabiamente, da ministra da tutela e do respectivo director-geral.
Porquê a comitiva, tratando-se de um gesto de pura solidariedade humana? Simplesmente porque Marcelo Rebelo de Sousa não é já um cidadão comum, está a ser acompanhado pelos media 24 horas sobre 24, e qualquer gesto menos pensado daria logo origem a ilações políticas as mais negativas, do tipo: “Vejam lá, foi sem dizer nada ao Governo…” etc., etc., etc. Impensável!
Mas o que foi fazer o Chefe de Estado a Tires?
Eu próprio – confesso – medi os gestos do Presidente no curto vídeo que o “site” da Presidência da República divulgou. Para lhe tentar discernir a máscara habitual do sorriso oficial, do aperto de mão frouxo, de quem olha para o lado, a traduzir o desejo de quem gostaria de estar a milhas do local, das pessoas, da situação.
E não encontrei isso. Encontrei mesmo o oposto… espontaneidade, sensibilidade, compreensão, traduzida esta na mensagem positiva de que a prisão é um tempo de preparação para um novo começo.
Não estou prestes a canonizar o Presidente (desde logo não teria os respectivos poderes canónicos…) ou escrever a hagiografia de Marcelo Rebelo de Sousa, com um título do género Vida e Obra de São Marcelo…
…mas não posso deixar de realçar o quanto me sensibilizou o gesto. E porquê, exactamente?
Porque o que o Presidente fez foi dar simbolicamente um abanão na muralha de preconceitos que nos dividem, apesar das boas intenções dos discursos (política e socialmente) correctos, em sentido contrário.
E Marcelo Rebelo de Sousa tornou mais visível a outra face, a verdadeira, daquelas mulheres detidas, a cumprir penas: a de gente como nós, que um mau passo excluiu momentaneamente do nosso convívio.
Com presença a seu lado de Francisca Van-Dunen, a simpática ministra da Justiça, o visitante realçou a importância das actividades de reinserção levadas a cabo pelas detidas, apontando-as como experiência a generalizar.
Dificilmente esquecerão aquelas mulheres a diferença que fez nas suas pessoas aquela simples e surpreendente visita. Que diferença? Vai ser-lhes encurtada a pena? Vão ter melhores condições de encarceramento?
Não, foi-lhes reconhecida dignidade, como pessoas e cidadãos, pelo mais alto magistrado da Nação.
Que a visita sirva pelo menos, cá fora, de pequenina semente para uma atitude diferente, relativamente ao universo carcerário e os desafios que coloca à sociedade e suas instituições.
Carlos Frota
Universidade de São José