O Homem, um ser chamado a algo mais!

O Homem, um ser chamado a algo mais!

MARIA SUSANA MEXIA, PROFESSORA DE FILOSOFIA E COLABORADORA D’O CLARIMHÁ VÁRIOS ANOS, MEDITA SOBRE A GRANDEZA DA HUMANIDADE

O Homem, um ser destinado a viver com os outros, portador duma capacidade superior que lhe foi atribuída, insere-se no seio de cada sociedade, recorrendo a um conjunto de valores inerentes a si mesmo, os quais especificam e diferenciam a sua espécie, levando-o a distinguir o que é bom do que é mau, aquilo que é melhor do que é pior, o que pode ou não pode ser feito.

Na imensa riqueza da sua natureza humana e divina, própria de um ser espiritual, está também integrada a Liberdade para conhecer, poder decidir e escolher.

A lei natural de conduta é intrínseca ao Homem, enquanto ser racional e livre, é património de todas as culturas. Já a encontramos nas civilizações ancestrais, como normas a aplicar, em Sófocles na obra Antígona – a heroína da lei natural – e no Direito Romano, nomeadamente com o filósofo e jurista Cícero (Século I a.C.).

Isto significa dizer que os valores morais são uma espécie de “código de conduta”, indicando a cada indivíduo como deve agir no interior da sociedade para se integrar, adequar e progredir no sentido de um maior equilíbrio, protecção de todos os seus membros e enriquecimento comum.

No Século IV a.C. acreditava-se que o Homem só conhecia a partir dos sentidos. Aqui encontramos Tales, Anaximandro, Heráclito, Parménides, entre outros. Foi o princípio da Ciência, procuraram a Origem do Universo, mas conclusões diferentes e opostas conduziram ao cepticismo da existência duma verdade absoluta. “O homem é a medida de todas as coisas”. Porém, em Atenas, Cidade-Estado da Grécia antiga, surge Sócrates, o primeiro pensador a reflectir acerca de assuntos estritamente humanos. “Conhece-te a ti mesmo”, uma frase inscrita no Oráculo de Delfos, e por ele tomada como ponto fulcral do seu pensamento. A verdade existe, mas está dentro do próprio Homem.

Platão, seu discípulo, continuou o tema, mas defendeu que os valores são conceitos racionais, eternos e imutáveis. Os nossos sentidos são capazes de nos enganar, por isso, devemos procurar uma outra origem da verdade. Para este filósofo é na Alma que reside tal capacidade, oriunda do “Mundo Inteligível” contém todo o conhecimento verdadeiro, provém do raciocínio e possui uma identidade atemporal e indestrutível.

O Homem deve buscar ascender do mundo sensível ao inteligível, para ter um real conhecimento dos seres. Deve abandonar as pré-concepções e os pré-juízos lançando-se rumo às Ideias, as quais, segundo Platão, são um princípio inteligível, que não sofre transformação nem corrupção. As Ideias são puramente espirituais, não contêm materialidade alguma, nem contacto com o mundo sensível, já nascemos com elas gravadas na nossa Alma, daí permitirem-nos um conhecimento puro e seguro.

Segue-se-lhe Aristóteles, para quem “O homem é, por natureza, um animal racional e político”. Quer dizer, um ser pensante, capaz duma comunicação aprimorada com os outros homens, através da fala, na Pólis grega. A Política e a Ética são dois dos grandes temas que desenvolveu, organizando-os num sistema que permite diferenciar a importância da sua conduta, agindo em sequência. A coragem, os valores e as virtudes foram as suas ferramentas, para que o Homem pudesse ascender e melhorar as suas acções e comportamentos em prol do bem e da justiça na sociedade. A Alma é por excelência o elemento espiritual responsável pela unidade e forma, ela é o elemento que une e dá vida à matéria, sem Ela o Homem fica inanimado, deixa de ser ou de existir.

Os séculos rodaram, a civilização grega decaiu, a romana aproximou-se, carente de ética e de estética, mas conseguiu interiorizar os bons hábitos daquele povo conquistado.

Porém, na Palestina, dá-se um acontecimento, uma Estrela surgiu portadora duma nova mensagem salvífica: um Deus feito Homem veio ao mundo para nos salvar e redimir. Perseguida nos primeiros tempos, cedo começou a atrair os povos de todo o Império, a decadência moral acentuava-se e Cristo foi portador duma nova mensagem de Esperança e de Vida Eterna. Volvidos uns escassos três séculos o Imperador Constantino, em 313, pelo Édito de Milão, torna possível a liberdade de culto para o Cristianismo.

Vêm e vão bárbaros, sucedem-se invasões, caem Impérios, mas no Ocidente, a Europa vai formando os seus reinos, delineando as suas fronteiras, os seus limites, formando-se numa identidade que não é só geográfica ou económica, mas essencialmente cultural, espiritual e religiosa.

A matemática, o pensamento, as artes e a música foram um depósito de conhecimento e de beleza para a Humanidade, identidade e cultura da Europa. As grandes ideias e ideais humanistas aliadas à Teologia, fizeram a nobreza do espírito do Homem, que se sente chamado a ser algo mais do que um animal, graças ao cultivo da Alma Espiritual, ao seu aperfeiçoamento como Pessoa, dignidade que lhe assiste como dádiva do Criador.

Herança tripla de Atenas, Roma e Jerusalém, não obstante sermos um “mamífero perigoso”, acresce-nos a superioridade que nos habita, assiste e permite conduzir-nos à superação, ao aperfeiçoamento e à Transcendência.

VALORES E VIRTUDES

Durante a Idade Média, os filósofos gregos e a moral cristã foram a via possível e edificante, de formar o saber pensar, no Ocidente. Com as Ideias de Bem em Platão e as linhas Éticas de Aristóteles, aliadas às qualidades imprescindíveis para progredir, as chamadas Virtudes no agir – Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança , estava traçado o plano de desenvolvimento e aperfeiçoamento do Ser Humano.

Na chegada do Cristianismo todas estas qualidades filosóficas se mantiveram, porém foram enriquecidas, aperfeiçoadas e revestidas dum carácter divino, centrado na Pessoa de Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem. Todos os Seus ensinamentos se conjugaram para recordar à Humanidade que foi criada para seguir um caminho de salvação e de amor – Eu sou o Caminho, A Verdade e a Vida.

Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, os grandes filósofos e doutores da Igreja, deram-nos a beleza da harmonia entre a Fé e a Razão, numa simbiose teológica e filosófica ímpar.

A Idade Média com o seu empenho e laboriosidade luminosa, criou as Universidades na Europa, construiu Catedrais magnânimas, fez pinturas e esculturas duma beleza transcendente. A Música foi um expoente de eloquência tão humana quanto divina e a Matemática progrediu em paralelo com outras áreas complementares.

Mas também houve muita força e empenho na defesa de um património humano, que corria o perigo de ser suplantado, senão destruído, por outros hábitos, outros costumes, outras tendências. E houve pestes mortíferas, flagelos terríveis, com incêndios e fomes de permeio. Mas a tudo, este continente sobreviveu e floresceu, ancorado na sua Fé, com objectivos terrenos e propósitos divinos bem definidos.

Algumas trevas pairaram, mas estes dez séculos foram extraordinariamente positivos, para a Humanidade, em todas as áreas do saber, do agir e do Ser.

Porém, os valores desta cultura ocidental alicerçados em séculos e séculos, foram sendo paulatinamente abalados do Século XVI ao XVIII, com alguns “livres-pensadores” e fortemente contestados no Século XIX, por Marx, Nietzsche e Freud – os mestres da suspeita, aos quais se podem acrescentar algumas ideias mais revolucionárias, anarquistas, etc. Também as teorias de Darwin ou o seu distorcido aproveitamento, puseram em causa alguma estabilidade antropológica.

O Positivismo de August Comte ou a crença cega de que a Ciência iria dar resposta a todos os males da Humanidade, levou o Século XX a acalentar o sonho dum mundo sem Deus e sem valores que, como todos sabemos, deu origem ao maior inferno perpectuado na História da Humanidade. Guerras, extermínios, perseguições e totalitarismos.

Gerou-se um vazio axiológico ou ausência de valores, acrescido do enfraquecimento da capacidade crítica, que facilmente conduz à manipulação dos indivíduos e gera a indiferença e o descomprometimento político-social face ao isolamento, ao egoísmo e à defesa do património comum.

Se os valores são a forma mais humana de se ser Homem, conferindo-lhe um dom e uma capacidade de saber e querer crescer, aperfeiçoar-se e ser algo mais, a sua ausência conduz, inevitavelmente, à sua degradação e, naturalmente, ao campo das maiores perversidades face à nossa natureza.

Em tempos de ambiguidade, de relativismo, de opiniões e mais opiniões, a Verdade anda muito distorcida e afastada. “Confundir para reinar”, também não é uma prática recente, embora esteja hoje mais acentuada e difundida, especialmente pelos que têm por dever, missão e profissão relatar os factos verídicos, dispensando juízos de opinião, ou outras estratégias influenciadoras de colonização ideológica.

Ludibriar, inventar, distorcer ou similares, era muito mau sinal, era incorrecto, era grave, era uma vergonha ou até, por vezes, uma atitude conotada com alguma patologia. Afirmam alguns responsáveis destas áreas, que hoje já se mente sem se dar conta, da forma tão natural como se afirma uma verdade, defende-se uma mentira, com toda a leveza, banalidade ou leviandade.

A ausência de referências, de normas, de distinção entre uma verdade e uma mentira, pode gerar indiferença, permissividade, desleixo, faculta a proliferação da confusão, do desentendimento e da insegurança, numa complexa rede de atropelos sociais, morais, familiares e económicos. Em águas turvas é muito difícil uma orientação saudável, uma atitude de equilíbrio e de tranquilidade de modo a permitir a capacidade de discernir.

“Ipso facto”, torna-se cada vez mais premente recorrer aos valores, nomeadamente os éticos, sabendo que eles são guias de comportamento que asseguram a unidade da conduta humana numa determinada cultura, com um sistema de normas que proporcionam os padrões a adoptar para uma adequada vivência. São os princípios orientadores das nossas decisões, opções e acções, tornando-as preferíveis a outras, impondo-se, exigindo o respeito dos membros do grupo em que vigoram.

Os valores só existem no mundo humano e social, tomam forma na linguagem e são interiorizados através da educação. São uma bússola, um farol que nos indica o caminho a seguir, reflectem os ideais duma sociedade e adquirem-se no processo de socialização, sobretudo, na formação integral das crianças e dos jovens. Encontram-se na ordem do ideal e não na dos objectos concretos ou dos acontecimentos, apontando para um modo de agir superior, pelo que convidam à adesão e ao empenho. Lidamos com os valores de forma apaixonada, com uma componente afectivo-emocional.

Nos valores não pode haver ambivalências, ou é bem ou é mal, têm dois polos, um implica o outro – o bem contrapõe-se ao mal, o doce ao amargo, o escuro ao claro, etc.. Ser um e ser outro, ao mesmo tempo não é possível. Em axiologia, não pode haver neutralidade: ou é sim ou é não.

O ser dos valores não é o mesmo ser da realidade, o seu modo de ser é o valer, isto é, o modo como cada membro de uma cultura os valoriza. A Beleza dos Valores enaltece e engrandece quem os pratica e quem os vê.

A capacidade de poder escolher ser, é sinal da nossa nobreza humana. Em qualquer civilização o Homem foi chamado a aperfeiçoar-se, a crescer em sabedoria, em capacidades, a caminho do mais, do melhor e da Eternidade.

A dignidade do “homo sapiens” é a percepção duma sabedoria inerente ao seu próprio EU, que o impele a procurar um conhecimento desinteressado, fomentando o desejo de se aproximar do Criador como caminho de perfeição e sentido de vida. Esta noção de querer e poder fazê-lo, leva-nos a concluir que o Homem também possui Liberdade para tal. Os animais e as plantas não a têm, movem-se de acordo com os estímulos, os instintos e as leis da natureza, são portadores duma alma mortal.

O Homem, um ser criado e cunhado por Deus, com um corpo mortal e uma alma imortal, tem a missão de ser algo mais, de se transcender-se, elevar-se, ser dono do seu destino, saber escolher, atingir a plenitude e a perfeição do humano, tocar o infinito e o divino, como prova da sua origem, do seu pensamento, da pertinência do seu existir, da dignidade que lhe assiste e da Vida Eterna que o aguarda.

Susana Mexia

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