O Corvo na cidade
Ex-membro de dois relevantes e inovadores projectos do panorama musical português das últimas décadas – Corvos e Quinta do Bill – o violinista Nuno Flores está de passagem por Macau. O músico lisboeta aproveita esta deslocação ao Oriente para dar um concerto a solo amanhã, dia 11, pelas 19 horas e 30, nas instalações do Macau Design Center, na Rua da Fábrica, ao lado do Parque Sun Yat Sen, às Portas do Cerco. Dono de um invejável currículo, Nuno Flores conta com várias digressões internacionais e parcerias em gravações de músicos tão diversos quanto eclécticos. Paulo Bragança, o “enfant terrible” do fado, Carlinhos Brown, Ivete Sangalo ou os roqueiros Titãs, são apenas alguns dos nomes com quem já trabalhou. Como músico de estúdio convidado, participou em registos discográficos dos portugueses Moonspell, UHF, Blindzero, GNR, e dos brasileiros Raimundos, sonante nome do rock sul-americano. De salientar ainda as colaborações de Nuno Flores com Tony Garrido, dos Cidade Negra, e com Rodrigo Leão, autor, com o acompanhamento dos Vox Ensemble, da obra discográfica Mysterium.
O CLARIM – Integrou dois importantes projectos musicais do panorama musical português, os Corvos e os Quinta do Bill. Continua, de alguma forma, ligado a eles?
NUNO FLORES – É verdade. De 1993 a 2005 fiz parte dos Quinta do Bill, enérgica banda que marcou diversas gerações. Foi, para mim, enquanto músico, um período de grande crescimento e solidificação do companheirismo existente entre nós. Os Quinta do Bill, como todos sabem, com a sua orientação folk-rock, conquistaram, com todo o mérito, um lugar ao sol no universo musical português. Sinto orgulho em ter participado nessa enorme aventura, que teve os seus momentos de glória. Também fui membro e fundador de os Corvos, banda essencialmente instrumental. O nome surgiu devido aos livros de Edgar Allan Poe, autor que muito admiro, e da longa-metragem “O Corvo”, com Brandon Lee.
CL – Entretanto, seguiu uma carreira a solo…
N.F. – Sim. Em 2009 decidi continuar com a música instrumental e criei os The Crow, ensemble de cordas que junta violinos, violoncelo, bateria, DJ e voz. Temos uma sonoridade eléctrico-acústica e habitualmente interpretamos versões de bandas emblemáticas, a nível nacional e internacional. É o caso dos Xutos & Pontapés e dos U2, entre outros. Tocamos também temas da minha autoria. Considero-me o “violinista The Crow”, e assim sou conhecido. Uma alcunha que sairia reforçada após o tributo aos Muse no disco de estreia – The Crow Ibiza.
CL – O que o trouxe a Macau?
N.F. – Encontrava-me a promover esse trabalho nos Estados Unidos e na Colômbia, quando, por sugestão de um grande amigo meu, o José Manuel Simões, surgiu a possibilidade de actuar no território. Foi ele que tratou de tudo.
CL – É a sua primeira visita ao Oriente. Impressões desta sua experiência?
N.F. – Tinha ouvido falar da cidade e da magia que emana, e não fiquei desapontado. Estou a adorar. Espero poder regressar dentro em breve.
CL – Viveu os últimos anos no Brasil. Qual a razão dessa escolha?
N.F. – Após a aposta numa carreira a solo, achei que era tempo de conhecer novos mundos e novas culturas. Apontei a agulha de marear nessa direcção e acertei em cheio, pois os brasileiros são um povo acolhedor. Senti isso de imediato, assim que pisei Terras de Vera Cruz. Passei a colaborar com nomes sonantes na área do MPB e do rock, um enorme privilégio e uma mais-valia para um violinista como eu. Além da música, envolvi-me em negócios de restauração, que abandonei anos depois para atender a compromissos mais importantes em Portugal.
CL – Participou na elaboração da banda sonora de um conhecido filme brasileiro. Como foi essa experiência?
N.F. – Toquei em quatro dos temas da banda sonora composta por Carlinhos Brown para o filme “Capitães de Areia”, baseado no conhecido livro de Jorge Amado. Foi uma excelente aprendizagem a nível pessoal e profissional. Ilustrar musicalmente um filme, ou um documentário, é mais simples do que parece. Todos os elementos básicos já lá estão – acção, romance, trama política ou social – basta apenas acrescentar-lhes os sons que constituem a música. Após essa experiência, os convites foram surgindo. Estive em Natal, como instrumentista convidado, num espectáculo do grupo rock Titãs. Mais tarde, toquei com a Ivete Sangalo e participei na peça de teatro “O Caminho das Índias” levada à cena pela Companhia de Teatro ABC, de Salvador da Baía.
CL – Pensa aventurar-se, aqui na Ásia, nalgum tipo de projecto?
N.F. – Por acaso tenho um em mente, inspirado no concerto que darei em Macau. Mas ficará, por enquanto, no segredo dos deuses. Entretanto, a cidade tem sido fonte de inspiração para um novo tema dos The Crow. Veremos como correm as coisas daqui para a frente. Como afirma o músico Charlie Santos – muito ligado à Casa de Macau, em Lisboa – também eu «quero ter saudades de Macau». É no palco que exprimimos as nossas emoções, fazendo aquilo de que gostamos e que nos completa. Poder partilhar isso com o público é uma sensação extraordinária. Não há palavras que a possam descrever.
CL – Em Portugal, algum projecto no horizonte?
N.F. – Sou conhecido internacionalmente, mas em Portugal, não. Os anos que tenho de palco e as participações que fiz dariam algum crédito em qualquer mercado internacional, mas em Portugal parece que não. Toquei recentemente na Colômbia com Carlos Vives, um dos expoentes máximos da música latino-americana, e tenho participado em muitos outros projectos na América do Sul. De todo o lado chegam convites, e dos mais diversos estilos musicais. Do heavy metal ao fado, da morna ao house (do DJ David Guetta, por exemplo), do rock à pop, etc. Parece que nada disso conta. Não deixa de ser estranho, ser bem recebido por artistas e audiências estrangeiros, e, no meu país, ignorarem-me por completo. Se quero dar um concerto, não consigo qualquer apoio. Sinceramente, não dá para compreender. Pergunto: Será que é por ter optado pela música instrumental? Acho que não. O que dizer então da opção tomada pelo nosso grande Carlos Paredes? Isto vai da mentalidade e do que se pensa hoje, em Portugal, do que é ou não vendável. Alheio a isso, prossigo com o projecto The Crow Ibiza, em digressão sempre que possível.
CL – Além de músico o Nuno Flores tem uma outra faceta que poucos conhecem…
N.F. – Sim. Sou sócio da Greenpeace e dou palestras sobre recursos naturais. Colaboro também com a AMI, a Amnistia Internacional, a Quercus e a Midas. Tenho um sentido de missão e gostaria de deixar a minha pegada de benfeitor para as gerações futuras. Não importa as estátuas ou os nomes nas ruas; importa, isso sim, as árvores, os animais, enfim, um ecossistema que perdure milhares de anos. Sim, planto árvores. E semeio pinhões e caroços de fruta em vasos, garrafões de plástico ou até nos copos vazios de iogurte.
CL – Atravessou uma fase difícil da sua vida pois, na sequência de um acidente, ficou em coma. Como é voltar a viver?
N.F. – Um acidente deixa sempre marcas profundas, sobretudo quando se está mês e meio em coma. Foi um caso sério, ao ponto de as televisões noticiarem a minha morte. Quando acordei, não sabia onde estava. Porém, ao ver-me rodeado pelos entes queridos apercebi-me do que realmente tinha acontecido. Os meses seguintes foram de luta, mas mantive a fé, pois estava perante uma segunda oportunidade. Encaro hoje a vida de uma maneira totalmente diferente. Creio que isso acontece com todos os que passaram por aquilo que passei. Face às adversidades, voltamos a valorizar todas as horas, minutos e segundos. Profissionalmente falando, tive de me adaptar a uma nova maneira de tocar violino. Confesso: o trabalho e o empenho trouxeram-me de novo a perfeição.
CL – Algo de substancial mudou, a partir desse momento?
N.F – Curiosamente, vi muitas portas serem fechadas numa altura em que mais precisava que estivessem abertas. Pior ainda: Vi projectos, dos quais fui mentor, serem desvirtuados. Afastaram-me, por exemplo, dos Corvos, banda que ajudei a criar e em prol da qual sempre trabalhei. Dois dos elementos da banda registaram o nome sem dar conhecimento aos restantes, aplicando essa horrível “fórmula do vale tudo”, infelizmente cada vez mais comum. Tudo mudou e eu passei a ser confrontado com isso todos os dias. Já lhes perdoei, pois só assim poderia seguir em frente. A vida e o destino, se for caso disso, encarregar-se-ão de fazer justiça.
Joaquim Magalhães de Castro