A torre inclinada de Ava
Os soberanos de Ava (hoje Inwa) conhecida como “cidade das pedras preciosas”, a justificar pródigo comércio de rubis, safiras e outras pedras preciosas, sempre se preocuparam em restabelecer a supremacia birmane, mesmo que isso obrigasse à transferência da corte para outros locais. Foi uma Ava no seu apogeu que conheceram os cativos do Sirião, tendo os mais sortudos permanecido aí por muitos e bons anos, transmutados em guarda pretoriana do monarca, numa altura em que a tradicional dependência dos mercenários estrangeiros ameaçava desaparecer. Em 1832 um diplomata inglês de visita à corte de Inwa mencionava a presença de «um armador português profundo conhecedor do idioma local e do siamês e muito chegado ao rei». No ano anterior um outro relato dava-nos conta de um cristão, chefe da guarda real que se dava ao luxo de andar armado na presença do rei. Garantia o britânico que «não havia em toda Ásia um país com tanta liberdade para pregar como em Ava». Nos anais birmaneses é mencionada também a presença de médicos portugueses na corte imperial.
Fiz a travessia até Inwa numa barcaça com gente amontoada, automóveis, motociclos, bicicletas e carros de bois. Na outra banda aguardavam pitorescas carretas puxadas por cavalos engalanados. Era nelas que os visitantes sem transporte próprio se passeavam pela ilha, classificada oficialmente como “área arqueológica de interesse público”. De copa larga e tronco forte e curto, belíssimas acácias rubras ladeavam as pequenas estradas que conduziam aos arrozais, lugarejos e pagodes em ruínas que ocupavam os terrenos da vetusta urbe. Significativos troços de muralha tinham sido exemplarmente recuperados, sobretudo junto às quatro entradas da cidade – Inwa, à semelhança das cidades chinesas, era de planta quadrangular – se bem que sinais do devastador terramoto ocorrido em 1838 continuassem visíveis em muitas das estruturas. Do antigo palácio imperial restava um torreão de vigia de 27 metros de altura conhecido hoje como “torre inclinada de Ava”.
À entrada, o funcionário encarregado de cobrar os bilhetes chamou a atenção para umas botelhas de cerâmica que repousavam na banca de um vendedor de quinquilharias, garantindo que eram de origem portuguesa, embora as palavras carimbadas no bojo atestassem fabrico neerlandês. O homem estava disposto a oferecê-las, «se tiverem alguma utilidade para si». Não era só ele que se dispunha a desembaraçar-se de pedaços de história resgatados das ruínas. Entre os objectos que um rancho de miúdos e miuditas com coroas de flores silvestres amarelas em torno da cabeça tentavam vender, vi estatuetas várias, frascos de vidro tosco destinados a guardar a tinta utilizada nas tatuagens e, sobretudo, muitas moedas. Dava para imaginar a quantidade de peças valiosas que iam saindo do País, mais ou menos clandestinamente, com a conivência de funcionários ou monges pouco escrupulosos.
De todo o património edificado na ilha o mais valioso era, sem dúvida, o mosteiro de Bagaya, construído inteiramente em teca e sem recurso a qualquer prego, tarraxa ou cavilha, corria o ano da graça de 1553. Nesse mosteiro eram educados os nobres, atendidos por monges feitos professores. À entrada, afixada numa trave de madeira com claros traços das intempéries e que parecia estar ali para durar uma eternidade, curiosa placa alertava os estrangeiros para a necessidade de adquirir um “foreign ticket” por uns módicos quatro dólares. No interior, tal como tinha acontecido no palácio de Mandalay, pasmei com a beleza das estatuetas e dos rendilhados geométricos em alto-relevo. O constante salmodejar dos monges e os inúmeros gatos que por ali vagueavam conferiam ao local uma atmosfera de mistério que naturalmente convidava ao recolhimento.
Conclui a minha visita com uma breve passagem por Sagaing, conhecida pelo fabrico artesanal de filigrana em prata. Para tal, bastou-me atravessar uma ponte datada de 1934, até muito recentemente a única conexão entre ambas as margens do Irrauadi. Apesar das colinas circundantes estarem repletas de stupas douradas – duas centenas de pagodes e uns quinhentos mosteiros! – apenas o sumptuoso e hemisférico pagode de Kaunghmudaw, de 42 metros de altura, que de acordo com os registos oficiais buscou inspiração na Mahaceti, a “stupa mãe” do Sri Lanka, merece destaque nos panfletos turísticos. O povo, porém, acredita que o arredondado zimbório, erigido em 1636, representa um dos seios de uma rainha birmanesa e celebra o estabelecimento de Inwa como capital da Birmânia, precisamente na sequência do saque a Sirião e exílio dos seus residentes.
Joaquim Magalhães de Castro