Myanmar

Um bispo irreverente

«Da próxima vez que voltar, provavelmente já cá não estarei». Estas palavras proferidas pelo padre Anastasius revelar-se-iam proféticas e logo do modo mais trágico. Quando assim falou, o pároco de Shwebo antevia a possibilidade de ser afastado do seu posto. Talvez não pensasse no seu desaparecimento terrestre, o que, de facto, veio a acontecer.

Foram os empregados tâmiles da diocese – por sinal, parentes afastados do bispo – que me deram a notícia ao verem a foto de Anastasius numa das revistas que levava comigo, uma vez que nesse ano e meio de interregno tinha publicado vários textos, exposto algumas dezenas de fotografias e preparava um documentário sobre os meus caros “portugueses esquecidos”.

Enquanto aguardava que o prelado terminasse a sesta, os indianos, prestáveis como sempre, apressaram-se a direccionar a parabólica de forma a captar a RTP Internacional. Mas parece que estava com azar, porque a programação oferecia apenas péssimas telenovelas brasileiras e os habituais enlatados, apresentados pelos truões de serviço.

Malgrado a dieta rigorosa que se impusera – «para não andar a insulina» – D. Alphonse U Thang mantinha-se activo e mostrou grande satisfação ao avistar-me de novo.

«– Repare neste desenho», dizia ele a respeito de um cartoon na última página do New Light of Myanmar, pousado junto a um exemplar da Time. «– Representa Aung San Suu Kyii. Estão sempre a meter-se com ela. Todos os dias. Creio bem que estão a arranjar lenha para se queimarem».

D. Alphonse não escondia a sua simpatia para com a líder da oposição, na altura ainda, e por muitos mais anos, em prisão domiciliária.

«– Aprecio-a muito», afirmava o bispo. «– É paciente, sabe esperar pelo momento oportuno e, mais importante, nunca alicia o povo à violência. Senão, já teriam ocorrido muitos banhos de sangue neste país».

Pelos vistos, o arcebispo bayingyi continuava sem papas na língua. Criticava o regime dos generais sempre que tinha oportunidade, insistindo num ponto particular: a nacionalização das escolas que a Igreja tinha a seu cargo.

«– Vieram com a desculpa de que os missionários cobravam muito dinheiro para ensinar. Mas a verdade é que agora cobra-se muito mais, com a desvantagem de o nível do ensino ter descido para valores nunca vistos. Enfim, o Governo tolera-nos. Seria um exagero dizer que nos respeita».

Ser católico em Myanmar era, de certa forma, sinónimo de dissidência. «– Desconfiam de nós e de todas as nossas actividades».

Apesar disso, D. Alphonse gostaria de reunir sessenta mil fiéis em Mandalay, por ocasião da efeméride “Evangelização 2000”, a ter lugar em Fevereiro do ano seguinte, mas duvidava que o Governo autorizasse semelhante concentração de católicos. «– Provavelmente, teremos de seleccionar um determinado número de participantes por cada diocese».

No dia seguinte, o seu motorista e vizinho, Patrick Peters de Castro, mostrar-me-ia um edifício governamental perto da igreja de São José, onde antes funcionara uma escola, um dispensário e um orfanato, a cargo da diocese. Ao avistar nas janelas aparelhos de ar condicionado recentemente instalados deixara a farpa: «– Pelos vistos, já estão muito bem acomodados…».

Na residência episcopal mantinha-se tudo na mesma. Nas paredes, os retratos de bispos italianos e franceses que precederam os prelados bayingyis.

«– Paul Bigandet, superior das Missões Estrangeiras de Paris, dizia que tínhamos herdado, pelo menos, duas coisas dos portugueses: a fé e a jovialidade própria dos povos latinos», explicava o bispo, apontando para o retrato de um deles.

E, de facto, quem lidasse de perto com os bayingyis depressa se apercebia de que algo de profundo os diferenciava dos restantes birmaneses. O bayingyi era, por natureza, expressivo, brincalhão, espontâneo e gostava de se divertir. E isso era bem visível, mesmo entre os membros do clero.

«– Tratamo-nos como se fôssemos irmãos», comentava Patrick, ao mesmo tempo que fazia cócegas à dactilógrafa do arcebispo, uma freira da congregação de São José da Aparição.

Depois, dando-me a entender que esse seu gesto era apenas exemplificativo, acrescentou: «– Se fizesse isto a uma monja, seria um enorme escândalo». De certa forma, os bayingyis consideravam os budistas preconceituosos.

Bastante mais debilitado do que no ano anterior, D. Alphonse tinha ao seu serviço uma lindíssima mestiça de sangue shan, chinês e kachin, e a irmã de Patrick.

«– Toda a comida servida ao bispo é cozinhada por ela lá em casa», informara esse bayingyi bem escurinho, que aprendera Inglês nos dezassete anos em que andara embarcado num cargueiro de pavilhão malaio. Vivia nas imediações da casa paroquial, num espaço reduzidíssimo, com a mulher, três filhos, a irmã, o irmão, a cunhada e não sei quem mais. Apesar disso, o bom do Patrick estava sempre a oferecer-me local para pernoitar, insistindo para que saísse da pensão. Homem simples e generoso, a sua maior preocupação era o filho mais velho de dezassete anos.

«– Não sei o que fazer com ele», desabafava. «Está numa idade complicada. Temo que trilhe caminhos ínvios. É por isso que o levo comigo aonde quer que vá».

Joaquim Magalhães de Castro

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