Museu do Oriente: Arte têxtil indonésia em exposição

A linguagem dos ikat

Encontra-se patente no Museu do Oriente, até 25 de Janeiro, uma interessante e inédita mostra de arte popular. “Linguagens Tecidas” é a primeira exposição a nível mundial exclusivamente consagrada, com um pendor intencionalmente pedagógico, aos têxteis ikat de tradição indonésia. Extremamente onerosos e de difícil confecção, continuam tão misteriosos como há quinhentos anos, aquando a sua “descoberta” pelo olhar dos ocidentais.

Estamos perante uma das melhores mostras de ikat indonésios na Europa e, muito provavelmente, a mais bem documentada do planeta.

Quase todos os itens exibidos integram a famosa Colecção Pusaka, de Peter ten Hoopen, residente em Portugal há vários anos. Este cidadão holandês, escritor e coleccionador, começou a adquirir os preciosos artefactos aquando a sua primeira viagem à Indonésia, na já distante década de 70. Hoppen é, na actualidade, um dos maiores especialistas neste mister ancestral, infelizmente, quase em vias de extinção.

 

TODO O ARQUIPÉLAGO

A totalidade do arquipélago indonésio, das grandes ilhas de Samatra, Bornéu e Celebes às mais remotas e minúsculas ilhotas, como Kei ou Tanimbar, encontra-se representado nas paredes de diversas salas do Museu do Oriente. Estão ali exibidos alguns dos mais raros exemplares do mundo, oportunidade única para o público contemplar, de perto, tão frágeis obras-primas. Damos aqui particular, e justo, destaque aos xailes ikat de seda, com brocado dourado, aos sagrados ikat duplos balineses, de Tenganan, e aos requintados ikat de Los Palos, Timor-Leste, dos quais, aparentemente, restam menos de uma dezena.

Constituída por 175 peças, antigas e vintage, “Linguagens Tecidas” tem como objectivo aliar à simples recolha de objectos uma forte componente didáctica – com a obrigatória partilha de conhecimentos «sobre esta arte mágica quase desaparecida» – sem que possamos descurar, como é óbvio, o elevado valor pecuniário dessas obras de eleição, certamente um dos motivos que levou Peter ten Hoppen a encetar semelhante aventura.

 

IKAT DE INSPIRAÇÃO PORTUGUESA

Entre este considerável e específico património indonésio constam também os ikat produzidos na ilha das Flores, nomeadamente na aldeia de Sica, verdadeiro bastião da memória lusa na Indonésia. Quem se encontre de visita à pacata cidade de Maumere, capital das Flores, deve dirigir-se para Sul, rumo a Lela, tendo de passar obrigatoriamente pela aldeia de Paga – avista-se já a costa sul da ilha – e, logo depois, Sica, onde a montanha toca literalmente o areal, curto e cinzento. O comum dos mortais certamente pensará em tsunamis e afins, embora qualquer surfista que se preze sonhe logo em enfrentar as ondas ao fim do extenso coral que separa a aldeia do oceano.

Sica é constituída essencialmente por casas de bambu, outras quantas de cimento. Poucas são as embarcações na praia, apesar de os habitantes viverem da pesca. Em Sica todos são Pareiras ou Da Silvas ou Da Cunhas. Ou ainda outro qualquer apelido português menos comum. Já nas páginas do Flores Pos, diário regional da ilha que folheei durante curta viagem, notara a presença de nomes familiares. O editor chamava-se Edward L.B. Da Gomes; o correspondente em Lembata – ilha onde se pratica ainda hoje a pesca à baleia – assinava Agnus Dei Parera; a enigmática função de “penimpu pernshaan” era ocupada por Solomon Hade A. Palma.

 

IKAT ASSOCIADOS AO TEATRO POPULAR

De uma beleza superior, os ikat de Sica são tecidos manualmente em teares verticais, um instrumento indispensável em cada lar, e os padrões variam consoante a região onde são produzidos. Há-os com figuras de aves e de animais, nada habituais no resto do Sudeste Asiático, e é comum encontrar neles padrões legados pelos portugueses, como é o caso do coração dobrado, do anjinho e do pelicano. Anastásia Da Cunha, uma das tecedeiras, cada vez mais raras, chamava-lhes “motif portuguis”.

Para além do padrão, também o corte dos vestidos das mulheres de Sica sofreu influência portuguesa, visível nos trajes de uma representação da “Taju Bobu”, dança que acompanha uma “sandiwara” (peça teatral intervalada com danças e canções) inspirada nos autos medievais portugueses.

Levada à cena no dia 25 ou 27 de Dezembro, após a missa, primeiro em frente da igreja matriz e depois no pátio do “Lepo Geto” (palácio do rajá), pode dizer-se que a “sandiwara” de Sica é um auto de Natal, se bem que a temática nada tenha a ver com a época natalícia. Este acto artístico, divulgado por António Pinto da França (diplomata português já falecido, profundo conhecedor da realidade indonésia), e que terá a sua origem no teatro popular mirandês, conta as peripécias da escolha de noivo para uma princesa. Habitualmente entram no auto treze actores e alguns figurantes. Entre os pretendentes à mão da donzela contam-se um “pintur” (pintor), um “pidagu” (fidalgo), um “pilotu” (piloto), um “grandi brebu” (grande bêbado), um “djugador” (jogador), um “grandi kondi” (grande conde), um “doktor” (doutor), um “peskador” (pescador), um “oriwis” (ourives), um “grandi prispim” (Crespim, figura de pícaro), e, finalmente, um “marchador” (mercador) que é o escolhido, pois a páginas tantas ele diz que «sokero morendo komunto dinjeru, parwo rengalho» (só quero marido com muito dinheiro para meu regalo). Para além dele há ainda uma “prins” (princesa noiva) e vários “bobu” (bobos) e “serdadu” (soldados). O auto é interrompido por frequentes cantos e danças que consistem num bater de pés e agitar de mãos. Escolhido o noivo, segue-se a festa de casamento com muito “arak” (aguardente) e danças.

A gente de Sica conhece o enredo da peça, embora não compreenda grande parte do texto, assim como não o entenderia na sua totalidade qualquer um de nós, pois as palavras foram corrompidas e estão associadas a vocábulos malaios.

De todos os personagens da “sandiwara”, só os “bobu” utilizam máscaras, que vão mudando no decorrer do espectáculo. Feitas de cartão e papel de lustro, essas máscaras são guardadas por um dos vizinhos de Edmundus Pereira (o último dos falantes de Português em Sica, e porventura em toda a ilha das Flores), encarregado de velar pela segurança das figuras em barro que constituem o presépio da aldeia, o “denak”, como se designa localmente.

Joaquim Magalhães de Castro

em Lisboa

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