Um exemplo de amizade e confiança
O recente e histórico encontro do Papa Francisco com o Patriarca Kirill constituiu um gigantesco passo para uma maior, e sempre desejável, aproximação entre as duas versões de um Cristianismo dividido há mais de mil anos. Ao longo da história outros passos significativos foram dados, voluntariamente ou pela força das circunstâncias, por pessoas como o padre Caetano Pereira Pires, um dos quatro religiosos católicos destacados em Pequim na primeira metade do século XIX, todos eles de nacionalidade portuguesa. Nessa altura, com a extinção da Companhia de Jesus e a implementação de uma política proibitiva no que se refere à actividade evangelizadora dos missionários europeus na China – decidida ainda durante o reinado do imperador Yongzheng e progressivamente aplicada ao longo dos Governos seguintes – o brilho de outrora da Igreja Católica desvaneceu-se.
Com a sucessiva “aniquilação” dos padres (Domingos Joaquim Ferreira faleceu em 1824, e Veríssimo Monteiro da Serra partiu para Portugal, onde faleceria em 1852), os locais de culto dos católicos foram desaparecendo. A Igreja de Nossa Senhora das Dores (Xitang ou Igreja do Oeste) foi demolida por ordem governamental. A Igreja de São José (Dongtang ou Igreja do Este), após um incêndio, foi expropriada pelo Império. Em 1827, o Imperador emitiu um édito ordenando nova expropriação, desta feita da Igreja de São Salvador.
Do espólio do Padroado restavam a Igreja da Imaculada Conceição (Nantang ou Igreja do Sul) e a Igreja de São Salvador (Beitang ou Igreja do Norte). Temendo que a Igreja da Imaculada Conceição fosse revertida a favor do Império, Caetano Pereira Pires decidiu “confiar as escrituras dos prédios e bens pertencentes à Igreja Católica a um missionário russo de apelido Wei”, ou seja, Veniamin Morachevich, destacado em Pequim, em 1821, como sacerdote da Décima Missão Ortodoxa, tendo permanecido aí para desempenhar a chefia da missão subsequente.
Embora não se trate da totalidade dos bens da Igreja, estamos a falar de um espólio bastante considerável, que compreendia não só valores pecuniários (dois títulos, ouro e prata em bastante quantidade) como também valores materiais (casas desocupadas e outras construções anexas à igreja, cemitério, hortas, o coche do bispo Caetano Pereira Pires, castiçais e diferentes peças de mobiliário).
Nessa época, a par com a fragilizada missão da Igreja Católica, sobrevivia em Pequim uma missão da Igreja Ortodoxa, resultado das sucessivas Missões Ortodoxas enviadas pelos czares aos imperadores chineses, logo a partir do início do século XVIII.
Além de um mútuo respeito, foi-se desenvolvendo entre o português e o russo uma forte amizade. Quando Pires se encontrava num estado terminal, vitimado pela doença, Morachevich visitava-o frequentemente ou enviava alguém para se inteirar do estado de saúde do português. Após a morte deste, a 2 de Novembro de 1838, (Caetano Pereira Pires foi o penúltimo bispo de Pequim), Morachevich tratou dos assuntos por ele recomendados, considerando isso uma retribuição aos feitos dos missionários portugueses e “uma obrigação decorrente da fraternidade”.
Convém recordar que nos primeiros contactos estabelecidos entre chineses e russos, os missionários católicos europeus, recorrendo ao Latim, serviram sempre de intérpretes. Por essa razão, o Czar Pedro I dera rigorosas instruções à Missão Ortodoxa Russa em Pequim “para se relacionar cordialmente com os missionários católicos europeus, evitando os confrontos”. Assim, a relação entre esses irmãos na crença, pautou-se sempre pelo mútuo respeito e a diplomacia. Como nos diz Liu Ruomei, Investigadora da Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim, «os missionários ortodoxos que entraram na China aproveitaram as experiências adquiridas pelos missionários católicos no que diz respeito à aprendizagem de língua, da história e da cultura chinesa, bem como na estratégia da pregação do Cristianismo». O chefe da segunda Missão Ortodoxa Russa, Antonij Platkovskij, que chegou a Pequim em 1729, “trazia consigo as sebentas para o estudo da língua chinesa compiladas por jesuítas”, material que transitaria para a Quarta Missão (1744 e 1755), e assim sucessivamente.
Um estudante, A.Vladykin, que permaneceu na capital chinesa de 1781 e 1794, “acompanhando a Sétima Missão Ortodoxa”, afirma ter copiado manualmente o Dicionário Chinês-Latim compilado pelos jesuítas. O próprio padre Veniamin Morachevich que tratou dos bens deixados por Caetano Pereira Pires, fez, a propósito, a seguinte observação: “A nossa Missão Ortodoxa e os missionários portugueses, ao longo destes seis anos, têm-se amparado mutuamente, sendo o seu zeloso auxílio preciosíssimo para todos nós…” Desta afirmação se depreende que Veniamin Morachevich estava imensamente agradecido a esses missionários, daí que não tenha defraudado a confiança que Caetano Pereira Pires lhe depositara. Como nos lembra Liu Ruomei, “falecido Caetano Pereira Pires, o missionário russo solicitou ao Gabinete da Administração Interna reclamando o legado e o Imperador emitiu um édito no sentido de mandar entregar ao mesmo padre a Igreja da Imaculada Conceição… Além disso, os cemitérios Tenggongzhalan e Zhengfusi e a biblioteca Xiyang anexa à mesma Igreja passaram também à guarda do padre, evitando a sua devastação e perda por falta de cuidado. A situação manteve-se até ao 10.º ano do reinado do Imperador Xianfeng, isto é, 1860 d.C. Com a transacção entre China e os países ocidentais, o sucessor do referido padre de apelido Wei devolveu todos os livros confiados por Caetano Pereira Pires”.
Joaquim Magalhães de Castro