Memórias e Fortalezas no Leste de África – Parte 5

De Macuti e Pedra e Cal

Pela sua posição estratégica, fulcral ponto de apoio à navegação, e também devido ao facto de o Governo da colónia ter ficado aqui sedeado até finais do século XIX, a Ilha de Moçambique reúne o mais impressionante acervo arquitectónico de origem portuguesa em toda a África.

Percorro as ruas de saibro ladeadas por casarões senhoriais com uma traça arquitectónica comum aos que encontramos nas cidades históricas do Brasil, da Índia ou um pouco por todo o Sudeste Asiático. Moradias pintadas de amarelo-torrado com umbrais brancos, varandas e janelas de guilhotina. Protegem as janelas do rés-do-chão finas barras de ferro e, nas esquinas, aferrolhados às paredes, sobressaem bonitos candeeiros de ferro forjado de cor verde e com motivos decorativos, se bem que a ferrugem tenha corroído grande parte deles. Num desses edifícios – circundado por aquelas chapas de zinco anunciadoras de obras – uma placa indica o responsável pelo trabalho de reabilitação: o banco BCI, sedeado num outro edifício colonial ali próximo, esse já totalmente recuperado. As restantes construções, todas com restauro previsto, albergam hotéis e restaurantes e diferentes serviços administrativos. Aqui, tal como na baixa de Lisboa, as entidades bancárias são donas e senhoras dos mais importantes e valiosos imóveis.

 

PEDRA DE LIÓS E BURACOS DE BALAS

O café Âncora D’Ouro, propriedade de portugueses, é um bom exemplo desse meritório trabalho de gradual recuperação em curso. Dizem-me que é o melhor local para comer. A preço europeu, saliente-se. Quem opte por comer a preço africano deve dirigir-se à cidade de macuti, onde não faltam botequins ou vendedeiras sentadas nos muros que ladeiam as ruas, ou em frente ao mercado local, disponibilizando iguarias de confecção caseira. Em frente ao Âncora D’Ouro, a fachada branca de uma pequena igreja destaca-se do céu intensamente azul. Ali está instalado o Museu de Arte Sacra, como vem indicado no frontispício com a data 1700, embora a igreja deva ser anterior. A cinquenta metros dali, um pedestal sem estátua ergue-se no meio de uma praça ladeada por várias casas senhoriais bastante degradadas e a longa parede leste do antigo colégio dos Jesuítas que se prolonga até uma outra praça, já ribeirinha, pois a banda leste da Ilha de Moçambique é já ali.

Nas ruas o movimento é reduzido. Avisto um ou outro homem de bicicleta e várias mulheres, novas e velhas, com bacias à cabeça e baldes na mão. Vejo-as depois a entrar nos pátios interiores dessas imponentes casas onde se advinham estendais de roupa e crianças a brincar. Lembro as palavras de Luís Filipe Pereira, «não hesite em entrar nesses pátios», mas não sigo o seu conselho. Parece-me demasiado intrusivo. Prefiro ir ficando com esse olhar do exterior que me revela paredes esboroadas, com mais ou menos estuque, e blocos de pedra de liós onde ficaram gravadas para a posteridade, criteriosamente embutidas na ombreira da entrada principal, algumas origens pretensamente mais nobres.

Os buracos de balas nas paredes conferem ao local uma atmosfera de ruína de guerra, pois esta também aqui se fez sentir com grande intensidade logo após o dito processo de descolonização.

 

CALÇADA DE XISTO

A fachada ocre da igreja do Colégio dos Jesuítas, com sino no campanário e um enorme relógio que não há muito tempo parou nas 7 horas e 30 de um dia qualquer, disputa as atenções com a estátua de Vasco da Gama, erguida numa praça embelezada por um género de calçada à portuguesa bastante peculiar. Aqui, pequenos paralelepípedos de quartzo e xisto substituem os tradicionais paralelepípedos de basalto e calcário que “exportamos” em grande quantidade para sítios como o Brasil ou Macau. O formato geométrico – motivos ondulados escuros sobre um fundo claro – é exactamente o mesmo.

Há nesta praça duas outras estátuas. Figuras femininas semi-nuas, quais estátuas romanas, verdes como os raros bancos de jardim. Só que neste caso, assemelham-se mais a mulheres indianas. Uma delas, em jeito de Estátua da Liberdade, enverga um facho que culmina num candeeiro. A estátua é, na realidade, um simples candeeiro. No metal, vários buracos provocados por balas perdidas é mais um sinal de uma Moçambique outrora dividido. Saliento ainda a existência de um coreto – que não deve ter visto qualquer banda a tocar ali há muito, muito tempo – e do Edifício dos Correios e Telegrafia, o único sítio com computador e acesso à Internet em toda a Ilha. Ou seja, quando se consegue rede, o que nem sempre acontece.

A troco de uns magros meticais, e antes de avançar para a fortaleza de São Sebastião, tomo aqui uma espécie de pequeno-almoço, servindo-me dos deliciosos doces de banana frita caseiros que três meninas de sorriso luminoso transportam em bacias e pequenas caixas de plástico.

Deparo com mais casas em avançado estado de degradação, mas com pequenas hortas onde cresce milho, abóboras e árvores de papaia, o que não deixa de ser irónico.

Num edifício já recuperado, mas com a porta fechada, funciona o Gabinete de Conservação da Ilha de Moçambique, entidade que resulta do esforço conjunto do Governo moçambicano e da UNESCO, que, a julgar pelo que vejo, tem imenso trabalho pela frente. As paredes de certas habitações estão de tal modo carcomidas pela erosão que apenas se vislumbram os blocos de saibro e o tradicional chunambo, constituído por areia, conchas e barro, pois essa era a argamassa de outrora. Casas há que nem paredes têm. Noutras, as janelas e portas que restam foram seladas com blocos de cimento e placas de zinco. Apesar de tudo vive ali gente, ou pelo menos há sinais disso. Pobres de hoje albergados nos palácios dos ricos de outrora; o antigo cafre que ocupa o anteriormente inacessível domínio do senhor branco.

 

A PRESENÇA DO ISLÃO

Sou interpelado por dois vendedores de colares de missangas, as tão faladas missangas! Também me mostram moedas portuguesas. E búzios. São de tal forma insistentes que me vejo obrigado a prometer que irei comprar algo mais tarde. Será difícil não cumprir a promessa, pois a Ilha é uma verdadeira aldeola onde todos se conhecem e todos se encontram ao dobrar da esquina, mesmo que tudo se faça para o evitar. Então, se confinarmos esta realidade à cidade de pedra, as probabilidades de passar despercebido são ainda mais escassas.

Na parede do edifício com que me deparo mais adiante uma placa indica que estou perante a “primeira mesquita construída no nosso país, no século XIII”. Muito antes da passagem de Vasco da Gama, o reino do xeque Moussa M’Biki (de onde deriva o nome Moçambique) era já um importante centro de intercâmbio comercial e cultural. Como resultado disso, multiplicaram-se etnias e crenças que ainda convivem neste exíguo espaço, apontado como exemplo de ecumenismo, como o comprova a frase “Unidos por Moçambique” escrita nas paredes da mesquita.

Não fosse a ténue chamada para a oração vinda das mesquitas e os barretes na cabeça de alguns dos homens, seria impossível distinguir os muçulmanos dos cristãos ou estes dos hindus. O Islamismo está há muito tempo aqui instalado, tal como no Golfo da Guiné, se bem que na costa oriental africana tenha chegado por via marítima e não com as caravanas que estoicamente cruzavam as regiões mais inóspitas do planeta.

Decido atravessar para a outra banda da Ilha – uns cem metros apenas separam a costa ocidental da costa oriental – e deparo com o que resta da antiga sede do Sporting Clube de Moçambique, vestígio de um passado colonial bastante recente, que não deixa de ser ruína e me faz lembrar casas do género em Timor-Leste, resultado da barbárie outrora imposta pelas infames milícias.

Erguido junto ao mar, numa pequena restinga, um outro edifício é, pode-se dizer, ruína antes de o ser. Trata-se de um inacabado projecto de restaurante de um francês morto recentemente em estranhas circunstâncias. De resto, é o único caso, de que se ouve falar, capaz de levantar suspeita quanto à existência de algum tipo de criminalidade na Ilha. «– O francês era já homem maduro; e a sua namorada bastante jovem ainda», comentava a propósito a senhora Flora, deixando no ar a possibilidade de estarmos perante um crime de foro passional. Para os mais supersticiosos, o francês fora, pura e simplesmente, uma vítima mais dos bruxedos que assolam a região.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *