Entre matatus e um trago de Amarula
Do lado da minha janela, nesta desolação a perder de vista, surgem de vez em quando, parece que do meio do nada, alguns masai, secos e hirtos como a terra onde vivem, cobertos apenas pelas vestes avermelhadas como o barro de que são feitas as minúsculas cubatas quadrangulares que constituem as suas aldeias tradicionais, o que sempre é uma desejável alternativa às miseráveis barracas ovais de plásticos e oleados cheios de buracos que também lhes servem de lar, e que avistamos logo à saída de Mombaça. Multiplicam-se agora as aglomerações humanas com feixes de lenha à entrada dos casebres e algumas cabeças de gado que rondam por ali. Os masai, por tradição, consideram seu todo o tipo de gado que lhes apareça pela frente. De que é que vivem estas pessoas? Onde vão buscar a água? O tal litro e meio diário desse precioso líquido aconselhável a todo o ser humano, é com certeza um luxo muito difícil, senão mesmo impossível de obter numa aridez destas. E não tarda o alerta: “Welcome to Voi town! Water is life!”
Fazemos uma curta paragem na cidade de Voi, nos arredores da qual existe um crematório hindu (mais um sinal de uma comunidade indiana significativa) e um cemitério da “Commonwealth War”, o que lá isso quererá dizer…
Vendedores ambulantes entram na camioneta tentando vender de tudo um pouco. Em Portugal ainda sobrevive algo do género na região de Pombal, na figura da mulherzinha dos pastéis de Tentúgal que percorre os compartimentos do Intercidades.
A planície desértica dá lugar a um vale delimitado por montanhas em ambos os lados. Aproximam-se as montanhas, redobram as ofertas hoteleiras. Hotel Mont Kenya e o Traveller Choice e uma mesquita com múltiplos minaretes, para quem quiser rezar. Um marco quilométrico indica: Nairobi: 375 Km. Estamos em pleno Parque Nacional de Tsavo, como o confirma uma placa, a visão de um branco vestido de caqui montado numa bicicleta e – imagem mais insólita ainda – um babuíno que calmamente atravessa o macadame da estrada 109, ignorando o arame farpado que ali foi posto para proteger a vida selvagem.
Uns quilómetros adiante, um enorme cartaz elucida, para quem não sabe ainda, acerca dos construtores da nova estrada. Esta China Road não podia ser mais explícita!
O tráfego permanece ruidoso e intensíssimo. Não admira. Esta é a única via de acesso ao mar para países como o Uganda, o Burundi ou o Ruanda, e Mombaça o grande porto abastecedor do continente africano. Prosseguimos atrás de um longuíssima fila de camiões, como o Rwanda Boys que, como vai mais leve, tenta a ultrapassagem, sem que ninguém a conceda. Dir-se-ia que os camionistas decidiram levar todos os contentores de uma só vez para Nairobi. E para atrasar ainda mais a operação, que por ser tão lenta mexe com os nervos do mais paciente dos mortais, cada ajuntamento de duas ou três casas, dá direita a lomba, esse percalço incomodativo e sem qualquer justificação numa zona esparsamente habitada.
Em cada povoação há agora uma mesquita vistosa e uma estação de serviço. Paramos para comer num restaurante onde estão outros autocarros da Coast, que tem por mote “we lead, others follow” e um simpático tigre como logótipo. Aproveito para beber duas Picanas de rajada. A Picana é um puro néctar de manga engarrafado em Mombaça sem quaisquer aditivos (vamos acreditar nisso) que custa apenas trezentos showels a unidade.
Na Tanzânia a paisagem é marcada por aglomerados de árvores, espaçadas entre si, mas árvores na mesma; no Quénia é a savana que dita as regras, agora com mais embondeiros, tendo entretanto regressado as plantações de ananás disseminadas na secura da savana onde às vacas de bossa se juntam agora antílopes, lembrando-nos que subimos para um planalto situado a uma cota suficiente elevada para que faça frio à noite.
Os postos de controlo da polícia tanto podem ser uma barraca com um carro à sombra de uma das raras árvores, onde aguardam três agentes. Num desses postos uma mulher polícia empunha com orgulho uma metralhadora AK 47 quase do tamanho dela. As melhores fotografias são aquelas que nunca temos oportunidade de tirar, ouço-me a mim mesmo.
O GOSTO DO AMARULA
Já nas proximidades de Nairobi apanhamos um pedaço de estrada em tão mau estado que chego a temer o horror que passei naqueles traumáticos sessenta quilómetros a caminho de Dar es Salam. Não chega a tanto, mas é mais de uma hora de violentos solavancos e de muita poeira que não poupa o interior do veículo. Viajar em África é sofrer até ao fim. Como entretanto a noite cai e nada mais há para ver lá fora, decido meter conversa com Susan Wairimu, mulher de negócios de Nairobi que regressa a casa depois de mais uma das suas deslocações de trabalho a Mombaça, onde regularmente compra tecidos para abastecer a pequena loja que tem na capital queniana. A mercadoria vem também a caminho, só que num dos camiões que a esta hora inicia a sua lenta marcha na 109.
Localizada a cerca de mil e setecentos metros de altitude, banhada por um rio onde vai buscar o nome, Nairobi é a maior cidade da África Oriental. A sua origem remonta a 1899, quando em substituição de Mombaça desempenha progressivamente o papel de capital oficial do Protectorado Britânico da África Oriental, estatuto confirmado em definitivo em 1905 e que manteria até ser adoptada como capital da República do Quénia, constituída após independência do Reino Unido, em 1963.
Nas ruas reinam os matatus – literalmente, em língua suaíli, “três cêntimos por passeio” – o mais comum meio de transporte público. Falo da miríade de pequenos furgões, com 14 ou 24 assentos, que opera na área urbana de Nairobi e cidades vizinhas.
Facilmente identificáveis pelas suas pinturas extravagantes e coloridas, todos os matatus têm a respectiva rota imprimida nas partes laterais da carroçaria. Potentes sistemas de som e os filmes exibidos em ecrãs televisivos encarregam-se de entreter os passageiros, que assim se mantêm alheios, para sua tranquilidade, às constantes e perigosas manobras dos endiabrados motoristas.
A primeira paragem do expresso da Coast é no aeroporto de Nairobi, o que a mim me dá um jeito dos diabos, pois tenho ainda de comprar bilhete para Mascate. Graças à simpatia e disponibilidade do funcionário da Gulf Air, a única companhia com balcão aberto a essa hora, consigo lugar no voo dessa noite e sobra-me ainda tempo para, na sala de espera, ser torturado com as pieguices do Kenny G que terão de ser afogadas numa cerveja Tusken, que pelos vistos é o nome dado ao elefante que matou um dos fundadores desta marca, o que não deixa de ser uma estranha forma de homenagear alguém.
No assento oposto ao meu, um chinês estuda Inglês com a ajuda de um livrinho de bolso, procurando com o olhar, sempre apreensivo, um seu compatriota. Acaba por o encontrar, iluminando-se de repente o seu olhar.
Nos ecrãs de plasma permanentemente acesos, repetem-se as imagens do costume com os irritantes e histéricos “Coming Ups” importadas dos canais televisivos norte-americanos. Lembro a resposta de alguém à pergunta: Será que a palavra perdeu poder? Sim, de facto, houve um regime da palavra que foi substituído pelo da imagem. Como dizia essa pessoa, «os heróis de hoje são simultaneamente os nossos fantasmas».
A espera vai ser longa, por isso tenho ainda tempo para dar uma vista de olhos pelos títulos expostos na livraria local. A maioria é sobre Barack Obama, como seria de esperar, mas há dois que me chamam a atenção. O “China Returns to Africa”, de vários autores, entre os quais um tal Ricardo Soares de Oliveira, e o “The Gate of Africa – Death, Discovery and the Serch of Timbuctu”, de Anthony Satin, onde uma vez mais, pelo menos a julgar pelo texto de introdução, se ignora o pioneirismo português nessa mítica cidade do norte de África. Neste capítulo, já nada me surpreende.
Nas lojas do “duty free” destaca-se, pela novidade, as atraentes garrafas de Amarula, bebida sul-africana, parecida com o Baileys, feita à base do fruto amarelo de uma planta conhecida como a “árvore do elefante” que umas meninas de mini-saia e botas de tacão alto estão a dar a provar aos passageiros. E é com um cheirinho de Amarula que me dirijo para o portão de embarque. O voo é às 4 horas e 20 da manhã, mas às 3 e 30 estamos já a entrar para o aparelho.
Joaquim Magalhães de Castro