A mão da Fundação Calouste Gulbenkian
O Forte de Jesus acabaria por ser reconquistado em 1725 por uma expedição comandada por Álvaro Caetano de Melo e Castro, antigo capitão em Moçambique, numa altura em que voltavam às nossas mãos Zanzibar e Pate. Mas o sabor da vitória não duraria muito mais tempo. Em 1729 uma revolta dos habitantes de Mombaça contra os portugueses originou um novo cerco ao forte, obrigando à rendição da guarnição em finais de Novembro desse mesmo ano. A partir de então a fortificação andaria de mão em mão, ao sabor das forças dominantes na região, até à independência do Quénia no século XX.
Entre 1741 e 1837 Mombaça gozou do estatuto de cidade-Estado independente, até ao regresso dos omanitas que uma vez mais a ocuparam. Contudo, em 1875 já eram os ingleses quem de facto a dominavam. Vinte anos depois, com a efectivação da colónia inglesa do Quénia, o já então renomeado Fort Jesus seria convertido numa prisão governamental. Abandonada durante décadas, só após a independência, durante a governação de Jomo Kenyata (que deu nome ao País), é que a fortaleza seria recuperada, com o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian. O trabalho levado a cabo por esta instituição entre 1958 e 1960 foi determinante, contudo, a lembrar esse facto há apenas uma placa em metal à entrada do forte, escrita em Inglês e sem uma única menção a Portugal.
Felizmente há aqui quem conheça bem os factos e saiba dar o seu ao seu dono.
«– Pode fotografar à vontade. É o seu país que ajuda a preservar este monumento, o mais importante e o mais visitado do Quénia. Estamos muito gratos por isso», encoraja o guarda desta fortaleza museu, quando lhe pergunto se posso fotografar o interior, onde algumas das construções – capela, paiol e armazéns – estão ainda em excelente estado de conservação.
O Fort de Jesus é, nos nossos dias, o mais importante monumento histórico do Quénia, encontrando-se requalificado como um museu.
GRAFITOS SEISCENTISTAS
De uma das paredes interiores foram resgatadas uns interessantes desenhos que representam caravelas e naus, soldados portugueses e omanitas, peixes e aquilo que aparenta ser uma espécie de camaleão, que, segundo consta, teriam sido feitos por marinheiros e soldados que aqui estavam estacionados. O seu negativo foi transposto para uma tela de acrílico agora exposta numa das salas disponíveis com o ostentoso título “Portuguese Wall Painting”. Mesmo ao lado, onde funcionava a antiga caserna, está instalado um museu contendo algum do espólio retirado do mar em 1963 por um grupo de mergulhadores amadores que a quinze metros de profundidade deparou com algumas peças antigas de porcelana chinesa e objectos de origem portuguesa. Entusiasmadas com a descoberta as autoridades quenianas investiram na pesquisa e, de 1977 a 1979, equipas de arqueólogos, entre os quais constavam técnicos portugueses, retiraram diversos objectos, muitos dos quais se encontram agora em exibição: jarrões de origem portuguesa (um deles intacto), pratos de porcelana com a insígnia da Casa Real, um canhão em bronze datado de 1678, e muita e variada porcelana chinesa da dinastia Ming.
As escavações revelaram ainda que uma parte do casco do navio, por se encontrar enterrada no lodo, mantém-se bem conservada. Foram ainda encontradas garrafas vazias, com as rolhas por perto, o que é consistente com a descrição que consta de um manuscrito guardado em Lisboa e que se acredita que seja da autoria de um dos sobreviventes da fragata Santo António de Tanná, construída em Bassaim, na Índia, e que se afundou em 1697 ao largo de Mombaça. Nesse documento o homem conta que após ter combatido durante todo o dia de 16 de Setembro, os membros da tripulação, sem nada para comer, optaram por se embebedar com o resto do vinho que ainda existia nos porões do navio ficando incapazes de prosseguir com as suas obrigações. Como dizia o poeta: morrer, mas devagar. E, já agora, bêbado, se possível.
VISTA PARA O KILIMANJARO
À saída reparo num painel informativo que nos dá conta que o restauro do local foi feito em 23 Outubro de 1960, por iniciativa de Pedro Teotónio Pereira, representante do Governo português “and sometimes Embassador to the Court of St. James”.
Na fortaleza de Jesus de Mombaça há canhões por todo o lado. No interior, nas ameias, e no exterior, junto a um obelisco onde vários homens jogam às cartas. E há também canhões meio comidos pela ferrugem enterrados na areia junto ao mar, perto de umas bancas improvisadas onde se vendem colares, tambores e conchas.
Há um intrínseco aspecto religioso em toda esta imponente estrutura militar. A sua planta, em formato de um quadrilátero, conta com baluartes nos vértices – dois triangulares, em forma de espigão (pelo lado da terra), e dois em triângulo obtuso (voltados para o mar) – que evocam, respectivamente, São Filipe, Santo Alberto, São Mateus e São Matias. Junto a este último, encontra-se o portão de armas encimado por uma lápide com a seguinte inscrição: “Reinando em Portugal Phellipe de Austria o primeiro (…) por seu mandado (…) fortaleza de nome Jesus de Mombaca aomze dabril de 1593 (…) visso rei da India Mathias dalboquerque (…) Matheus Mendes de Vasconcellos que pasou com armada e este porto (…) arquitecto mor da India Joao Bautista Cairato servindo de mestre das obras Gaspar Rodrigues”.
A título de curiosidade, note-se que a planta do Fort de Jesus reproduz-se no forte dos Reis Magos, em Natal, na costa nordeste do Brasil, iniciado em 1598 pelo jesuíta Gaspar de Samperes, que fora “mestre nas traças de engenharia na Espanha e Flandres”.
Mombaça não é África, mas o caminho que é preciso percorrer para aqui chegar, esse sim que é africano, puro e duro. Desde que deixei Quiloa, as etapas contabilizaram uma média diária de quatrocentos quilómetros. Visitado que está o forte, há que regressar à África continental, primeiro fazendo uma breve visita ao hotel para recolher os meus pertences – tendo que requisitar para isso o precioso serviço de um riquexó com um autocolante onde está escrito “Ebenezer you are a wonder”, que talvez explique a mestria com que o seu condutor se desembaraça do tráfego infernal – e depois, preparando-me para olhá-la através do vidro baço do autocarro da Coast que parte para Nairobi ao fim da tarde.
A jornada começa por ser uma sucessão de desinteressantes paisagens áridas pontilhadas por palhotas de tecto de zinco e a constante presença dos meus já bem conhecidos sacos com carvão vegetal amontoados junto à estrada. O que tem em árvores a Tanzânia, tem o Quénia em arbustos rasteiros, que embora não forneçam sombra pelo menos esverdeiam a paisagem. De resto, só vejo “lodges” e lixo, lixo e “lodges”. Até nos cantos mais perdidos materializam-se hotéis, ou candidatos a isso. E eu, com toda a legitimidade, pergunto: com tanta oferta de quartos como é possível fazer negócio neste sector?
Fará certamente farto negócio a “Grace of God”, seita evangélica que por enquanto tem a sua sede numa barraca de chapa, mas que – não se iludam com as aparências – daqui a uns anos poderá estar instalada num vistoso edifício da capital.
Seguem-se plantações de ananaseiros e uma linha férrea a dividir uma imensa extensão de nada, literalmente nada, alcançável pela vista desarmada ao longo de pelo menos uns cinquenta quilómetros. Este é um veio de comunicação com o mar que tem as suas origens nos finais do século XIX quando os ingleses, senhores do Quénia e do Uganda, se mostravam obcecados em chegar à nascente do rio Nilo, encontrada séculos antes pelos pioneiros portugueses. Com a chave do Nilo na mão a pérfida Albion teria então a seus pés os gigantes Sudão e Egipto, já que os territórios destes países dependem dos humores do grande rio. Foi na persecução desse objectivo que os britânicos se empenharam na construção da via-férrea entre Mombaça e o lago Vitória, sendo este um dos maiores empreendimentos da sua colonização em África, não desprovida de dificuldades, como se pode imaginar. Só a chegada de um contingente de cerca de trinta mil indianos permitiu a conclusão da obra. Claro que finda a empreitada, muitos desses trabalhadores permaneceram, não só em Mombaça como em muitos outros locais, o que explica a presença de cemitérios hindus e templos sikhs em certas localidades que cruzamos.
No acto da compra do bilhete poderia ter pedido um “lugar com vista para o Kilimanjaro, por favor”, mas, como não tive esse cuidado, calhou-me na rifa o lado oposto, onde avisto agora o perfil de uma cadeia montanhosa, sombra orográfica que se destaca da extensa savana onde abundam arbustos espinhosos e apenas dois embondeiros entroncados, e que só pode corresponder ao famoso Kilimanjaro, o tal das neves eternas.
Joaquim Magalhães de Castro