Pelas terras da antiga Tanganica
No horizonte, as altíssimas antenas que asseguram rede aos nossos telemóveis, por mais distante que estejamos da civilização, não conseguiam ofuscar a agora cada vez mais regular presença do embondeiro, essa bela e misteriosa árvore cujos ramos mais parecem raízes a crescerem em direcção ao céu.
Ainda no ano anterior, antes de ter sido posto em prática o gigantesco investimento em alcatrão e brita do general Kadafi, para cumprir o percurso entre Mtwara e Dar es Salam eram necessárias duas semanas. Mas a empreitada do líbio não estava concluída, e por isso compreendi o prévio alerta lançado pelo amigo Jonas para que me preparasse para «uns sessenta quilómetros de estrada em muito mau estado». Mau estado!? Honesto será dizer um verdadeiro pesadelo de poeira e buracos que só terminou quando se começaram a avistar cilindros de cimento e bulldozers e camiões amarelos, sinal de que dali a umas dezenas de quilómetros a estrada voltaria a ser asfaltada.
O Lintu Express depositou-nos numa pequena rodoviária dos subúrbios de Dar es Salam, o que obrigou necessariamente a novo transporte. A presença de Jonas foi providencial para me ajudar a sair daquele caos. Uma outra carrinha levou-nos até à rodoviária principal da capital, de onde partiam os veículos para Mombaça. Jonas despediu-se de mim, não sem antes me deixar entregue aos cuidados de um seu amigo que fez questão de me acompanhar até à bilheteira, antes de ir à sua vida. Sentia-me como um menino mimado levado a passear pela ama-seca, e só não recusei a oferta para não ser desagradável, pois sei bem que da parte deles cumpriam apenas a sagrada regra da hospitalidade.
MOMBASSA EXPRESS BENFIQUISTA
Passei de uma carrinha apertada para uma camioneta com os assentos desconchavados, para onde fui literalmente empurrado com o bónus de ser obrigado a pagar quase o dobro do preço do bilhete, pois era isso ou um dia de pausa na capital. A verdade é que de Dar es Salam, por esta vez, bastaram-me os subúrbios, feios como todos os subúrbios dos países do dito terceiro mundo. O afã em chegar a Mombaça era tal que nem me dei ao trabalho de fotografar o emblema com a águia benfiquista em lugar de destaque na carroçaria do colorido Mombassa Express, estacionado do lado de fora da rodoviária e cuja partida estava prevista para a manhã do dia seguinte.
O objectivo era chegar naquele dia a Tanga, a mais setentrional das cidades tanzanianas, que dista da fronteira queniana ainda umas boas dezenas de quilómetros.
Desse percurso recordo apenas os sempre presentes vendedores de carvão, pedalando lentamente bicicletas carregadas com esse bem essencial, ou aninhados junto aos fardos que parecem estar pousados na berma da estrada até à eternidade. Esta é, sem dúvida, a imagem mais comum na costa leste africana.
Chegados a Tanga, a passageira sentada ao meu lado oferece-se para me levar a um hotel «bom e barato», mas como ela espera que eu lhe pague o serviço, dispenso desde logo a cortesia. O que em Quiloa se chama “guesthouse”, em Tanga tem o nome de “lodge”. É numa dessas “lodges” que tenho finalmente a oportunidade de usufruir de uma cama larga e uma ventoinha (a melhor companhia nas noites tropicais) que, quando ligada na sua máxima potência, parece querer levantar voo. É dessas mesmo que gosto! Porém, antes de poder descansar, há que assegurar lugar no pequeno furgão da Emirates Express que parte de madrugada com destino a Mombaça. A escolha do nome da prestigiada companhia aérea deve-se ao facto de ser a patrocinadora oficial do Chelsea, o clube de eleição do dono da pequena empresa viária, que ao vender-me o bilhete não perde a oportunidade para lamentar a saída do Mourinho da equipa londrina, como se eu pudesse fazer alguma coisa para que o mais famoso dos sadinos voltasse atrás na sua decisão.
Ainda de madrugada, vejo-me de novo encafuado em mais uma amostra de camioneta, onde mal cabem os oito passageiros arregimentados para a leva deste dia. A velocidade imprimida até à fronteira é alucinante, já para não falar da quantidade de regras de trânsito que imagino estarem a ser infringidas pelo condutor, pois o tecto baixo da viatura impede-me de ver o que se passa lá fora. Ou melhor, vejo apenas a parte inferior da paisagem, como se estivesse perante um filme com o ecrã cortado a meio.
Os polícias quenianos distinguem-se dos tanzanianos pela cor do uniforme que é azul. Todo o processo burocrático corre sem percalços e mais uma vez sou confrontado com imagens de Obama, no Quénia ainda mais popular do que na Tanzânia.
Mombaça avista-se do outro lado de um braço de mar. A nossa viatura junta-se a dezenas de outras no porão de um “ferry” que se apresta para zarpar rumo a essa cidade. Ao passear pelo convés deparo com uma caixa de madeira onde qualquer cidadão pode colocar o seu parecer acerca do que acha que poderia melhorar na sociedade queniana. Puseram-lhe o nome de Anti-Corruption Sugestion Box e é patrocinada pela Safaricom, a operadora de telemóveis que se gaba de ser “a melhor opção no país”.
MEMÓRIAS DO GAMA E SOLDADESCA
Mombaça, antigo entreposto frequentado pelos comerciantes do mar Arábico e da África subsariana que na altura da passagem de Vasco da Gama rumo à Índia, em 1498,contava já com uma população de dez mil almas, é hoje um dinâmico porto patrulhado pelos barcos da NATO que dão caça aos cada vez mais atrevidos piratas somalis. Ancorado no mesmo cais onde acostam os “ferries”, que num constante vai e vem transportam viaturas e passageiros, está uma fragata de guerra espanhola de couraçado cinzento onde esvoaça uma enorme bandeira amarela e rubra. Sei pelas notícias que a “Corte Real” portuguesa com certeza não andará longe, provavelmente faz patrulha algures no Golfo de Adém.
Os actuais quinhentos mil habitantes de Mombaça contam bastante na consolidação da espinha dorsal do comércio externo queniano, e isso sente-se logo à entrada desta cidade que não parece África, mas sim uma mistura de realidades asiáticas pontilhada por uma população negra considerável, mas sem grande peso na economia local, dominada essencialmente pelos árabes e indianos, sem esquecer, claro, os sempre presentes luso-descendentes.
Segundo consta num manuscrito que caiu em poder dos portugueses quinhentistas, a chegada dos árabes remonta ao ano 900 da nossa era. Tratava-se da seita dos Emosáides, que se dedicava no comércio das especiarias, ouro, marfim, panos da Índia e porcelanas da Pérsia e da China. A chegada em força dos indianos aconteceria muito posteriormente, já em plena vigência colonial britânica.
Começo por estranhar não ver qualquer loja ou restaurante chinês ou algo que se assemelhe, o que nos dias de correm não é muito usual, estejamos onde estivermos. Mas em Mombaça, tal como em Maputo, não há dúvida que é o indiano quem mexe os cordelinhos do universo económico-financeiro. Tendo isto em conta, poderia começar por me deixar inebriar pelo cheiro intenso a caril e a incenso, mas opto por me concentrar nos riquexós motorizados e na mole humana, de diferentes raças e credos, que se concentra nesta península que já foi ilha e que é responsável por este fascinante caos tipicamente asiático.
A Emirates Express, depois desta volta iniciática que me dá uma ideia daquilo que doravante posso encontrar, deixa-me em pleno centro e eu não perco tempo, entro na primeira pensão barata que me aparece pela frente, a New Daba Guest House City, que além dos quartos normais publicita ainda uns tais “self contained rooms” que não tenho a mínima ideia do que possam ser, nem me interessa. A minha prioridade é trocar dinheiro, encontrar um cibercafé e marcar a viagem de avião de Nairobi para Mascate, no Omã, o meu próximo destino. As duas primeiras tarefas são fáceis, mas a terceira revela-se praticamente impossível, pois é sexta-feira e sexta-feira no mundo muçulmano é sinónimo de feriado.
A sede do departamento de finanças e o posto central da polícia – onde os direitos para quem tenha o azar de ser feito prisioneiro estão bem explicitados, tintim por tintim, num grande painel exposto cá fora – são alguns exemplos da excelência da arquitectura colonial da cidade, se bem que quem domina as atenções, não porque encante mas porque destoa, é o feio e alto edifício do Banco da Índia, “a servir o Quénia há mais de 50 anos”.
Joaquim Magalhães de Castro