Memórias e fortalezas no Leste de África – Parte 1

Entre bibliotecários e baneanes de Diu

Moçambique é o ponto de partida de um périplo que me levará a visitar algumas pérolas arquitectónicas erigidas pelos portugueses ao longo da costa leste do continente africano, situando-se, a primeira delas, precisamente em território moçambicano.

Portugal tem por hábito chegar atrasado. E no que respeita ao Moçambique pós-independência não foi excepção. Motivos geográficos, de ordem logística ou até mesmo a opção do antigo território ultramarino em se juntar à comunidade de Estados falantes da língua inglesa justificam, de certa forma, o atraso nacional. Mas embora tenha aderido à Commonwealth, Moçambique continua a fazer parte da CPLP, organização com um funcionamento ainda bastante incipiente e intermitente.A incapacidade das autoridades portuguesas em reservar lugares nos voos comerciais da TAP rumo a Maputo, para trinta dos quarenta e cinco fuzileiros destacados pelas Forças Armadas destinados a participar nas operações de salvamento aquando as calamitosas cheias ocorridas aqui há uns anos, foi outra das nódoas nacionais. Situação que, como é óbvio, provocou desagrado e frustração entre os militares. Repetiu-se, afinal, o cenário do tardio envio de tropas para Timor.

De resto, o dito drama moçambicano teve bastante mais repercussão no estrangeiro do que no nosso país. O El País, por exemplo, desvendou aquilo que os jornais portugueses pareciam desconhecer ou não quiseram mencionar. Foi o caso das negociatas efectuadas por algumas das companhias de helicópteros sul-africanas, apresentadas ao mundo como resgatadores de mulheres e crianças indefesas, quando, no fundo, cobravam diariamente milhares de dólares a organizações humanitárias para efectuar esse serviço. Foi uma religiosa portuguesa quem fez a denúncia, mas, pelos vistos, os únicos jornalistas por perto capazes de registar o facto eram espanhóis.

 

O BIBLIOTECÁRIO MATTEO

Cheguei a Maputo de madrugada. Esperava-me Matteo Angius, bibliotecário do Instituto Camões e meu anfitrião nos dois dias que permaneci na capital moçambicana. Este italiano com muitos anos de África, casado com uma moçambicana, conduziu-me de imediato ao centro da cidade, deixando-me ficar junto a um edifício de varandas abauladas onde se encontrava sedeada a Embaixada portuguesa, o Instituto Camões e onde residiam muitos dos portugueses domiciliados naquele país. Ali fiquei alojado, a troco de trinta euros diários. Previamente informado acerca do objectivo da minha viagem, Matteo levou-me a visitar o local onde trabalhava e a casa onde vivia, num bairro central da capital, não sem antes me ter ajudado a sondar as pensões Fatimas’s e The Base, pejadas de sul-africanos, onde obtive informações acerca dos transportes internos, que mudavam de semana para semana, tudo dependendo das previsões de chuva ou não.

Tinha pela frente um país que desde logo me desencorajaram a percorrer pela via terrestre. «Nem penses». «Estás louco». «Só em sonhos». Eram desse teor os comentários. Assegurava quem ali vivia que muitos seriam os engulhos pelo caminho. Em vez dos dois ou três dias previstos para chegar à Ilha de Moçambique, primeira etapa dessa viagem, poderia precisar de quatro ou cinco. Ou até uma semana, como garantia, com alguma dose de exagero, António Pereira, ex-residente de Lourenço Marques e sócio do seleccionador nacional de então, Carlos Queirós, numa empresa do sector metalúrgico. Pereira regressara recentemente a Moçambique após longos anos de residência na África do Sul.

«– Os camiões que enviamos para o Norte, para Tete, chegam a demorar oito dias, pois a travessia do rio Zambeze é sempre uma incógnita», garantia.

 

MEMÓRIAS DO ZECA RUÇO

Conheci o senhor Pereira no átrio do edifício da Embaixada. O que era suposto ser uma simples resposta a um pedido de informação para resolver o usual problema de câmbio – imposição sempre que chegamos a um novo país – acabou por se transformar numa agradável mas breve visita à cidade, para que ficasse «apenas com uma ideia».

Numa carrinha de caixa aberta percorremos a avenida Julius Nyerere – anfitriã do mítico hotel Polana, do palácio presidencial e de algumas Embaixadas – e a marginal, até chegarmos a um café gerido por um grego, ao fundo da Costa do Sol, «ponto de encontro dos portugueses». Ao largo avistava-se a ilha onde esteve instalado, durante todo o Estado Novo, um dos mais importantes presídios além-mar. «Só escapou de lá um prisioneiro», informou Pereira. Chamava-se Zeca Ruço e era uma figura mítica na Lourenço Marques colonial, para uns uma espécie de Zé do Telhado, para outros criminoso retinto das províncias ultramarinas. Zeca Ruço acabaria por morrer em circunstâncias estranhas, na Tanzânia.

O empresário – acompanhado pela mulher, que recentemente chegara de Portugal – adiou o que tinha a fazer para me mostrar a baixa da cidade. No preciso momento em que passávamos em frente ao recinto onde anualmente se realiza a Feira Internacional de Maputo, comentou:

«– A última edição do FACIM foi uma vergonha. Os portugueses aqui representados em vez de abrirem ao público os respectivos quiosques, ficaram nos hotéis a beber copos. O facto foi até bastante comentado por cá, o que não abona nada em nosso favor».

À nossa esquerda avistava-se o mar e, logo a seguir, uma lingueta de água onde se adivinhava já território sul-africano, a escassos quilómetros apenas. Ali faziam aguada as embarcações das armadas com destino à Índia, nos idos de Seiscentos. Foi essa necessidade, aliás, que deu origem à cidade. Portugal estabeleceu, em data incerta, fortaleza e feitoria na baía de Lourenço Marques que nunca tiveram grande pujança. Hoje, domina a zona ribeirinha a pequena e bonita oitocentista fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, que o senhor Pereira fez questão de me mostrar, pois considerava-se «um grande aficionado da História». Esse português, natural da Maia, para quem «fazer negócio é como plantar uma árvore», lembrava-se de ali ver a cadeira do famoso chefe Gungunhama e muitos outros objectos que, entretanto, «levaram sumiço». Na verdade, pouco resta do espólio de outrora, tão-só alguns altos-relevos em bronze que recordam a histórica e humilhante rendição do soba africano face às tropas de Mouzinho da Silveira, hoje imortalizado, a cavalo, numa estátua que sobressai no jardim central do museu.

Estou certo que se dependesse dele, o senhor Pereira levar-me-ia a percorrer os restantes cantos da sua cidade cujas ruas, na quase totalidade, foram renomeadas após a independência. Da toponímia antiga resta a Rua do Marquês do Pombal e a de uma ou outra individualidade ligada ao período das Descobertas, como é o caso de António Bocarro, Damião de Góis e Fernão de Magalhães, este último com direito a avenida.

 

OS BANEANES DE DIU

A forte presença de indianos era um dos factos que mais saltava à vista quando se percorriam as artérias da cidade. A ligação dos baneanes de Diu com Moçambique remonta a 1686, altura em que lhes foi concedido o exclusivo do comércio entre essa praça-forte do Estado da Índia e Moçambique. Graças a isso, rapidamente ultrapassaram os mercadores portugueses e ainda hoje predominam na actividade comercial.

«– São donos de todas as lojas, não só em Maputo como nas demais cidades moçambicanas», garantia o senhor Pereira.

A eles se deve também um significativo contributo para a culinária local, abundante em caril e outros preparados à base das especiarias orientais – o resultado da passagem dos mercadores árabes, indianos e portugueses.

Ainda a respeito de deslocações terrestres em território moçambicano, contradiziam-se as opiniões. O vizinho de Matteo, Joaquim Falé, proprietário de uma agência de viagens, certamente com conhecimento de causa, assegurava que eram muito exagerados os sombrios cenários até então traçados sempre que buscava informação.

«– As estradas lá para o Norte estão em bastantes melhor condição que as daqui», assegurava.

Como não podia dar-me ao luxo de ir em frente com o meu plano inicial, comprovando assim o que me parecia simples especulação, optei por jogar seguro. Com a ajuda de Matteo adquiri passagem aérea para Nampula, capital da província homónima à qual pertence a Ilha de Moçambique. Com alguma relutância o fiz, confesso, pois essa mesma noite tinha início o Festival de Jazz de Moçambique, um dos eventos que contribuía para que Maputo fosse considerado um dos pólos culturais mais activos de toda a África.

Joaquim Magalhães de Castro

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