António do Rosário, príncipe de Bhusana

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 9

António do Rosário, príncipe de Bhusana

Relevante cenáculo cristão na região de Bengala, quarenta quilómetros a sudoeste de Daca, a igreja de Hashnabad usufrui de um imenso espaço relvado, local onde, de resto, deparei com os paroquianos de apelido Gomes de quem aqui falei na crónica anterior. A elegante fachada do edifício de cor amarela, excelente exemplo do legado arquitectónico luso no Bangladesh, data de 1777 e é ladeada por duas torres e ao lado de uma delas chama a atenção dos visitantes o memorial Amal Ganguly dedicado a um certo “Theotonious” que uma série de caracteres garrafais garantem ser “devoto servo de Deus”. Por detrás do dito, albergam-se as irmãs da Congregação de Nossa Senhora das Missões (instituição gaulesa aqui demandada em 1932), mais propriamente no convento St. Eufrejis, assim designado em honra da madre fundadora. «A estátua do Crucificado lembra a todos o sacrifício do Senhor pelo bem-estar da espécie humana», diz, ao receber-nos, o pároco local Christopher da Cruz. «Todo o espaço envolvente é profusamente decorado durante as ocasiões festivas, altura em que recebemos inúmeros visitantes». O padre Cruz faz-se acompanhar por uma freira – «irmã Cyntia Gomes», apressa-se ela a dizer. E é a própria que me conduz pela nave e corredores, alertando-me para as partes do templo a necessitarem de urgentes melhoramentos. Chama-me desde logo a atenção, mesmo em frente a um nicho com São José e o Menino, uma lápide funerária com os seguintes dizeres: “Aqui jaz o Reverendo João José Pereira, vigário de Tutel. Nasceu em Majorda (Goa) a 5 Maio 1865. Falleceu em Hashnabad a 7 Novembro 1913”. Mesmo ao lado, numa outra lápide, mas em Inglês, honra-se a memória do reverendo N.A.Lobo, “nascido em Aldona em 1855” e “falecido em Daca em 1917”.

Concluída a breve visita ao templo, convidam-nos a beber e a comer algo no refeitório da Casa Paroquial. Tempo então para uma longa conversa com os nossos anfitriões. Informa o padre Christopher que deve obediência à diocese de Melipor e tem à sua conta duas mil famílias de católicos, num total «de seis mil almas». Também na paróquia vizinha de Golla há uma igreja, construída originalmente em 1844, e em Tutel e Sholpur duas outras, datadas de 1914 e 1850, respectivamente. «Todas elas derivam da antiga igreja de Hashnabad, que permanece como um marco na jornada do Cristianismo no nosso país», esclarece. O termo “firingi” caiu aqui em desuso e poderá ser até considerado depreciativo. «Os “firingis” são todos aqueles que acreditam em Cristo», apronta-se a dizer a irmã, como quem põe água na fervura.

Prossegue o sacerdote com as apresentações, lembrando que a Diocese tem escola própria, «se bem que o Governo tenha a tendência para interferir», sendo o seu corpo docente composto pelas Irmãs da Nossa Senhora das Missões, substitutas dos tradicionais frades agostinhos. O padre Cruz aproveita para manifestar o seu desagrado por estar a viver num país maioritariamente muçulmano, torcendo o nariz e antevendo problemas no futuro. «Hoje em dia a situação é um pouco melhor. Já ouso difundir por altifalante, tal como fazem eles nas mesquitas, as orações da manhã, mas antes isso não nos era permitido», refere. Dando provas de algum conhecimento histórico, menciona a procura, por parte dos mercadores portugueses, do anil, “o corante azul”, e da musselina para a indústria têxtil, além das especiarias, é claro, e, peremptório, afirma: «entre os portugueses e o nosso povo podemos encontrar algumas semelhanças». Quais? Da Cruz não está com meias medidas: «há paroquianos com tez claramente mais clara».

Para ambos, é a primeira vez que encontram gente do país que lhes trouxe o Cristianismo. «Quando ouvi dizer que vocês eram portugueses fiquei muito contente», confessa a irmã Cyntia. Prova da fecunda ligação é o culto a Santo António, que aqui não tem função de casamenteiro, mas sim de prospector. «Se perdeste algo, e és um homem de fé, Santo António dar-te-á de volta o que tanto anseias», garante o padre Cruz. Lá está. Afinal, sempre tem a ver com assuntos de amor… Celebra-se a sua festa a 13 de Junho, como se sabe, embora na paróquia de Nagori (lá iremos na próxima reportagem), onde há santuário, a festa ocorra no mês de Fevereiro. A explicação é simples. Tal era a devoção ao santo que não hesitaram em fazer uma mexida no calendário, pois Junho é época de fortes chuvas e isso impedia muita gente de participar nas celebrações. Ainda a respeito do nosso Fernando de Bulhões, corre por aqui a seguinte e interessante estória: certo padre trouxe de Portugal uma estátua sua e optou por colocá-la na igreja de São Nicolau de Tolentino em Nagori. A estátua, no entanto, depressa levou sumiço. Três dias volvidos e o dito padre sonhou que ela se encontrava na aldeia vizinha de Panjora, e por isso decidiu construir aí uma bela capela. Desde então, esse é local de concorrida peregrinação.

Mais pragmática, a irmã Cyntia interrompe a conversa para nos mostrar aquilo que designa como «casa dos portugueses» para cujo poço teria sido atirado um padre, «goês, ao que consta». Conta o humilde edifício com uma capela, uma pequena biblioteca onde constam os registos paroquiais, e uns quantos quartos. «Esta é a rachadela que o bispo vos falou», diz a irmã apontando para uma das paredes. Só então me apercebo que o arcebispo Rosário os tinha contactado previamente, informando-os da nossa visita. «Quando há terramotos temos medo que isto caia, pois tem mais de cem anos», desabafa, com claro ensejo que nós pudéssemos vir a resolver o problema. Constato que, afinal, a tal “casa dos portugueses” de português tem muito pouco, e o que de antigo tinha foi demolido, pois, como singelamente confessa a freira, «estava muito velha». Enfim, sem comentários.

É já na recta final do nosso encontro que, finalmente, desvendo o porquê de tantos Gomes nestas redondezas. Para além da influência do nosso já conhecido jesuíta Inácio Gomes, não esquecer o desempenho de um dos primeiros agostinhos na região, o padre Rafael Gomes. «Porém», ressalva o padre Christopher, «temos outros títulos portugueses como Pereira, Da Cruz, Toscano, Ribeiro, Rodrigues, Da Costa, Rosário e Rego». Fala ainda de “títulos” menos usuais como São Nicolau e Purificação, alertando-nos para o perigo dos bandidos de estrada: «É melhor não voltarem muito tarde para Daca pois vocês são estrangeiros e pode ser perigoso».

Para perceber o contexto da introdução do Cristianismo na região teremos de regressar à captura do porto de Hugli em 1632, que resultaria na morte de inúmeros cristãos e aprisionamento de outros tantos. Dos muitos fugitivos seriam moldadas as comunidades da região de Larikul e Faridpur, junto ao Padma, tendo estas, numa fase posterior, devido à sedimentação do leito do rio, passado para a margem oposta, indo povoar Narisha, Jhonaki, Malikanda e Dhapari. Toda essa gente migraria para norte, para as áreas de Bandura, Hashnabad, Golla e Tutel. É aí ainda hoje reverenciado um certo António do Rosário, o grande responsável pela conversão da maioria dessa gente. Mas quem era ele afinal?

Na verdade, um príncipe, filho de Sitaram Ray, rei de Bhusana, pequeno domínio situado a sul de Faridpur, em Jessore. Em 1666 fora este jovem sequestrado por piratas Mog (Magh) e levado como escravo para o Arracão onde o padre Manuel do Rosário o resgataria. Em vão o tentaria endoutrinar nos Mistérios da Fé, o empenhado jesuíta. A conversão chegaria mais tarde, e graças a Santo António que povoaria um dos sonhos do jovem príncipe. Depois de adquirir suficiente conhecimento sobre a sua nova fé, optaria este por adoptar o nome António do Rosário, ou Dom António, decidido a regressar a Bhusana, de onde partira há quatro anos, agora na qualidade de pregador. Consta que mais de trinta mil habitantes dos distritos de Bhusana e de Larikul abraçaram a fé cristã devido às suas prédicas.

Outro interessante episódio ligado a Hashnabad, inicialmente um povoado maioritariamente muçulmano, prende-se com a governação de Bishnu Chandra Tewary, cujas intrigas levariam à abdicação do poder por parte do tolerante Dosto Muhammad Osmani. Ao assumir o título de “zamindar”, Tewary teve como alvo principal o padre Rafael Gomes, que com bastante sucesso pregava na região. Gomes foi encarcerado e mantido em total isolamento. Porém, logo após o incidente, Tewary tombou gravemente enfermo. Quatro dias depois, e a pedido da esposa do “zamindar”, Rafael seria libertado e, surpreendentemente, Tewary recuperava a saúde. Assustado, este entregou de imediato as terras entretanto confiscadas aos cristãos e não só autorizou a continuação da pregação do Cristianismo como deixou Hashnabad para sempre. Como consequência, o Cristianismo espalhar-se-ia pela região de uma forma mais rápida ainda, elevando a moral dos neófitos locais.

Joaquim Magalhães de Castro

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