Juliana da Costa, diplomata, médica e patrona da Companhia de Jesus
Comuns se tornaram outrora em todo o Oriente – e de certa forma o são ainda – narrativas fantásticas em que o herói era infalivelmente o “bravo português”, entrando neste pacote, embora raramente, algumas personagens femininas. Entre elas destaca-se uma mulher de ascendência portuguesa que durante várias décadas e ao longo de diversos reinados mereceria a total confiança da família real mogol, terratenente de todo o subcontinente indiano. Curiosamente, a dama, Juliana da Costa da sua graça, entrou ao serviço da Corte numa altura pouco auspiciosa…
Estávamos no último quartel do século XVII e empunhava as rédeas do Império aquele que terá sido, porventura, o mais cruel e déspota dos potentados mogóis. Muçulmano fanático, Aurangzeb mostrava-se hostil às demais religiões, contrariando assim a política de total tolerância cultivada pelos seus antepassados Akbar e Jahangir. A sua personalidade também era pouco recomendável: não hesitara em mandar assassinar os seus irmãos e prender o pai doente, Shah Jahan, para assim consolidar ainda mais o mando. É claro que Juliana, nascida em Agra, em 1657, não chegara ali sozinha. Jovem ainda, acompanhava o pai, Agostinho Dias da Costa, português de Cochim, um dos cativos levados de Hugli para Agra, após o saque daquela cidade portuguesa, e que graças aos seus conhecimentos na área médica acabara por ocupar o honroso cargo de assistente clínico de um dos filhos do imperador, o príncipe Bahadur Shah, catorze anos mais velho do que Juliana.
Bem cedo mostrara a luso-indiana forte inclinação para a Medicina, pendor herdado do progenitor e que viria a acentuar-se após o seu casamento com o cirurgião da Corte, circunstância que a aproximaria ainda mais da Família Real. Graças a um desenho que dela nos deixou Johan Joshua Keller, embaixador holandês à corte mogol em 1712-1713, podemos inteirar-nos da sua enorme beleza. Ser-lhe-ia confiada a tarefa de cuidar das outras mulheres e devido à proximidade que sempre mantivera com o príncipe Bahadur Shah, após a morte do pai Aurangzeb, em 1707, passaria a acompanhar o agora imperador no campo de batalha, montada num elefante de guerra, e nunca deixando de dar apoio moral e conselhos ao seu senhor. E bem necessitado deles estava Bahadur: o Império caíra na anarquia, tendo esse amigo de adolescência de Juliana saído vencedor de uma feroz luta fratricida a três. Herdeiros ao trono, entenda-se… Temos assim Juliana transformada em super-ministra, concentrada sobretudo na pasta dos Negócios Estrangeiros. Fazia-se acompanhar – como nos diz a investigadora Beatriz Bastos da Silva, que à personagem dedicou um interessante estudo – “por um séquito de seis mil pessoas e dois elefantes transportando duas bandeiras vermelhas com cruzes brancas”. Juliana funcionava, no fundo, como um elo de ligação (providencial) entre os comerciantes, os missionários e os legados estrangeiros enviados ao imperador mogol.
O jesuíta catalão Henry Heras, arqueólogo e historiador extremamente devotado à Índia, conta-nos um curioso episódio acerca desta formidável mulher, sempre atenciosa, altruísta e piamente cristã. Montara acampamento a 10 de Dezembro de 1711, em Sarai Khan Khanan, nas imediações de Lahore, um grupo de estrangeiros, deixando estupefactos os habitantes locais. Na manhã do dia seguinte, seriam visitados pelo médico da Corte, Monsieur Martin, acompanhado por uma trintena de cristãos de diversas nacionalidades. “O nobre estrangeiro que tinham vindo cumprimentar era Johan Joshua Keller, encarregado da Companhia Holandesa das Índias Orientais em Surate, e enviado da mesma Companhia, para obter concessões e facilidades, junto do Imperador Mogol”, conta o padre Heras. Um dos acompanhantes do médico francês entregara ao diplomata holandês um cabaz de peras, maçãs, romãs e outras frutas que o emocionaram pois lhe fizeram lembrar a sua terra natal. “Esses frutos”, diz Heras, “foram-lhe mandados por uma senhora portuguesa chamada Dona Juliana Dias da Costa, que ocupava uma posição de confiança no harém do Imperador e cuja autoridade na Corte era extraordinária. No dia 14 do mesmo mês, o embaixador encontrou-se com Juliana”.
Todo este prestígio e influência manter-se-ia após a morte de Bahadur Shah, em 1712, durante o período de violentos conflitos intestinos que se seguiu e após a subida ao trono de Farrukh Siyar, em 1713. Bastante doente, minado pelo carbúnculo, este monarca deve a sua vida aos conhecimentos de medicina natural de Juliana – que estudara bem os tratados de Garcia de Orta – e certamente também às suas orações, pois era uma pessoa muito devota. Uma vez curado o governante mostrou-se bastante agradecido e feliz e a indo-portuguesa, tirando partido desse estado de graça, moveria os necessários cordelinhos para facilitar a vida aos comerciantes e religiosos portugueses disseminados por todo o império mogol. Procederia de igual modo com os ingleses, com os holandeses e até com os representantes do Papa.
“Dona Juliana, dotada de forte personalidade, foi sempre um esteio de convicções seguras ao lado dos revoltos acontecimentos que fizeram suceder os cinco imperadores seus contemporâneos. O respeito que mereceu a cada um deles a sua presença e conselho deixa adivinhar nesta dama portuguesa a trave mestra de grande parte do funcionamento da corte”, conclui Beatriz Bastos da Silva. E apesar dessa posição privilegiada na Corte, “Juliana não parece sensível a benesses próprias, conquanto a saibamos rica, procurando sim servir-se da consideração que detinha para interceder pelos negócios do estado português e sobretudo pela Fé (…) Da pena rigorosa dos jesuítas não hesita em tecer-lhe encómios e agradecimentos pelo favor que lhes granjeou esta dama em pleno ‘coração’ do grão-mogol”. E até o Rei português lhe confiará os negócios longínquos, algo de inusitado numa época em que os assuntos de Estado eram matéria quase exclusivo do sexo masculino.
Juliana, apesar da sua proximidade com a poderosa Família Real de fé muçulmana, nunca desistiria de sua fé cristã, tendo sido fundamental a sua ajuda para os propósitos missionários da Sociedade de Jesus na disseminação do Cristianismo na Índia e no Tibete, daí que tenha sido reconhecida como Padroeira da Sociedade de Jesus. Além do seu casamento em Goa, seguramente sob os auspícios dos jesuítas, pouco se sabe da vida pessoal de Juliana Dias da Costa. Pelo contrário, o seu desempenho na esfera política, diplomática e sobretudo social é um facto inegável. “O mesmo podemos avançar no campo da sua generosidade para com os desvalidos, na colaboração que deu sempre à acção missionária. Foi-lhe concedida a mercê de poder comprar, a 2 de Junho de 1713, a aldeia Manory, da jurisdição portuguesa de Baçaim, constituindo para o efeito como seu procurador o Padre Henrique Pereira da Companhia de Jesus”, diz-nos Beatriz Bastos da Silva.
Juliana Dias da Costa faleceu em 1734 com 78 anos de idade, tendo sido contemporânea “de Shah Jahan (1592-1658), o viúvo inconsolável da bela Mumtaz-Mahal, de Aurengzebo (1658-1707), de Baadur Xá (1707-1712), de Jaandar Xá (1712), de Farrukhsiyar (1712-1719) e de Maomé Xá (1719-1748)”. Encontra-se sepultada numa campa anónima na cidade de Agra.
Joaquim Magalhães de Castro