O “palácio português” e os mercadores Cosme Gomes e Bueno Henriques
Numa visita efectuada ao Bangladesh em 2010 deparei no bairro de Madrasah Pahar, em Chatigão, com um velho edifício (pelo menos um século) onde outrora funcionou o primeiro tribunal dessa cidade. Conhecido oficialmente pelo nome de “Darul Adalat”, era designado entre os locais como “palácio português”, havendo quem garantisse ter sido utilizado como fortificação pelos piratas lusos no decorrer do século XVI. Urgia então, mais do que nunca, a sua classificação como “Património do Estado”, pois o proprietário – o Mohsin College – decidira derrubá-lo e aguardava tão-só a autorização do Ministério da Educação.
Abdul Gofran, director desse conhecido e reputado estabelecimento de ensino, afirmava ao periódico The Daily Starque as instalações não eram utilizadas desde 2002 devido ao seu avançado estado de degradação. “Enviámos uma proposta ao Ministério em 2009. Se for aprovada demoliremos o prédio e construiremos uma biblioteca no local”, afirmara friamente Gofran, incapaz de mencionar a relevância histórica dessa estrutura de dois andares, três escadas (uma delas em espiral) e vinte salas, sobranceiramente erguida no topo de uma colina da cidade e que era conhecida também como “forte português”. No telhado, em duas pequenas cúpulas, vigiavam outrora, diz a lenda, os sentinelas. Esboroava-se agora, ao mais leve toque, o saibro das paredes (com assinaláveis rachadelas) e despontavam nas telhas e no chão térreo as ervas daninhas e o musgo. No interior, mesmo no pico do dia, dominava a escuridão; as pequenas janelas mal permitiam a entrada da luz. Uma placa avisava: “Prédio abandonado em perigo de derrocada; não é seguro entrar”.
O Departamento de Arqueologia, limitado nos recursos, mostrava-se incapaz de proteger o edifício (esse e muitos outros por todo o Bangladesh), embora a sua directora-geral, Shirin Akhtar, garantisse ao The Daily Starque agia em conformidade “sempre que alguém informava formalmente o seu escritório acerca da existência de uma antiguidade”, enviando “um especialista para avaliá-la” e com base no seu relatório decidiam se merecia ou não ser oficialmente listado e protegido. Admitira a senhora serem muitas das intervenções do departamento que dirigia motivados pelos alertas da imprensa, lembrando que “até ao momento” não recebera qualquer informação referente ao “palácio português”.
Para a gente comum não restavam dúvidas quanto aos construtores do edifício – “foram os portugueses” – embora certos historiadores, como Shamsul Hossain, considerem ser esse “o primeiro edifício colonial construído pelos britânicos na cidade”, facto que só por si deveria colocá-lo sob a alçada da “Lei das Antiguidades”. De acordo com essa legislação de 1968, sempre que um local histórico esteja em risco tem o dever o Governo de o adquirir e recuperar. Shamsul Hossain chamava a atenção para o desaparecimento de grande parte do património de Chatigão. Dizia ele: “Se o Departamento de Arqueologia continuar a esquivar-se às suas responsabilidades, o pouco que resta também se perderá”.
Informa o escritor Abdul Haq Choudhury, no seu livro “História da Cidade de Chatigão”, que o “Darul Adalat” foi construído pelos “governantes britânicos logo após a tomada da cidade, por volta de 1761”, salientando as suas características únicas: “um misto de traços arquitectónicos mogóis e portugueses”. Face às citadas informações poder-se-á concluir ter sido o “Darul Adalat” erguido a partir de uma edificação portuguesa, porventura um forte ou até uma prisão, explicando assim a tradição oral das gentes de Chatigão.
Não deixa de ser curiosa a continuada menção aos piratas portugueses cuja actividade permaneceu no imaginário das populações locais. Nada que nos espante, pois após a saída de cena de Gonçalves Tibau toda a área costeira de Chatigão continuou sujeita às suas incursões, muitas vezes em aliança com os congéneres arracaneses. A afirmação de Niccolao Manucci de que, após a conquista, “Shaista Khan matou muitos portugueses” carece de confirmação. Confirma-se, isso sim, que em 1660 este viajante italiano havia encontrado muitos e abastados comerciantes portugueses de Hughli ainda detentores do monopólio do comércio de sal. O capitão do povoado era nomeado directamente pelo Rei de Portugal e tinha a apoiá-lo quatro assistentes administrativos eleitos anualmente, estando, uns e outros, sob as ordens do governador do Ceilão. Em Hughli, os portugueses ricos, à semelhança dos de Goa, levavam a vida de um nababo, ou seja, muçulmano rico detentor de um harém. Abaixo deles, os numerosos mestiços supervisionavam o trabalho servil dos escravos e dos camponeses indianos. Os sacerdotes portugueses constituíam a camada superior da ordem social, embora não haja evidência do estabelecimento da Inquisição como acontecera em Goa no século XVII.
Não se mostraria tão entusiasmado na sua descrição o viajante e médico francês François Bernier ao mencionar os “nove mil portugueses e mestiços vivendo na pobreza em Bengala”… Contraditoriamente, o viajante e mercador inglês Thomas Bowrey, no ano de 1670, fala-nos em “dez mil portugueses envolvidos na actividade mercantil de Hugli”, de um total dos vinte mil existentes em toda a Bengala. Refere, por exemplo, Abraão Bueno Henriques, judeu português, mercador de considerável quilate que mantinha estreitas relações com a Companhia Britânica das Índias Orientais. Alguns desses portugueses abastados fizeram generosas doações à Igreja Católica. A reconstrução da igreja de Bandel em 1761, por exemplo, só foi possível graças aos auspícios de um abastado mercador lusitano. Um desses comerciantes de relevo, um tal Cosme Gomes, manteve-se na ribalta desde o final do século XVII até a terceira década do século XVIII. Tal como os de Chatigão, também os habitantes portugueses de Bandel receberam a gratidão das autoridades mongóis por terem travado, com sucesso, os intuitos dos rebeldes Sobha Singh e Rahim Khan. No início do século XVIII, os assentamentos portugueses na costa sudeste estavam localizados em Dianga, Feringhee Bazar e Jamal Khan, em Chatigão.
Com o crescimento do comércio francês, mudar-se-iam os portugueses de Hughli para Chandernagore (Chandannagar). Os registos municipais dessa importante feitoria gaulesa do século XVIII demonstram a presença de um grande número de comerciantes lusos com casarão e escravos. Nessa mesma época, em 1733, para sermos exactos, os ingleses de Calcutá interditavam os seus servos de lidarem com os portugueses, temendo certamente a concorrência. Entrementes, Hughli não fora abandonado; há registo da chegada de um navio português em 1740. Tinham perdido entretanto, os portugueses, a sua ambição e interesse pela vida política. Muitos deles, sobretudo os mestiços, empregados no exército dos nababos locais, usufruíam de baixíssimos salários.
O nosso duradouro legado fez-se sentir sobretudo no campo da cultura. Devem-nos os bengaleses as frutas, flores e plantas exóticas, hoje parte integrante da civilização e cultura bengalesas. É o caso da batata, da castanha de caju, do mamão, do ananás, da goiaba e da manga, só para citar uns quantos. Até mesmo a multicolorida “krishnakali” (a nossa maravilha), planta ornamental de eleição em Bengala, foi na região introduzida pelos portugueses. Todo este processo foi possível devido ao nosso interesse pelo idioma local. Deve-se a um português a impressão do primeiro livro em prosa em Bengali, assim como a primeira gramática e o primeiro dicionário. Em 1599, o padre Sousa traduziu um tratado religioso para Bengali, infelizmente desaparecido. Outra relevante obra religiosa foi escrita por um príncipe bengali de Jessore, convertido ao Cristianismo – o Dom António de quem já aqui falamos. O seu superior, Mansel de Rozario, redigiria uma gramática bengali e um dicionário que seriam impressos em Lisboa em 1743, pois a impressora introduzida em Goa em 1556 nunca chegara a ser instalada em Bengala devido à natureza instável dos estabelecimentos portugueses naquela região.
Joaquim Magalhães de Castro