MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 19

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 19

Sebastião Tibau, senhor de Sundiva

Consta que para além da esperada desforra, outro factor determinou a acção, em Dianga, do rei arracanês. Viviam na sua corte alguns portugueses, hostis a Nicote e aos seus anseios, que prontamente advertiram Min Razagyi quanto ao verdadeiro propósito da embaixada encabeçada pelo primogénito do aventureiro: apoderar-se daquela praça e, em etapas posteriores, dos demais domínios do monarca. A hipótese é de todo plausível, pois frequentemente encontramos portugueses em campos opostos, entre si se digladiando, intrigando e atraiçoando. Nesse universo de alevantados, valia tudo e mais cinco tostões.

Entre as vítimas da carnificina de Dianga constava Manuel de Matos, capitão do bandel e, à época, feitor da ilha de Sundiva. Delegara este a função num certo Pero Gomes, seu capitão, que, por sua vez, provisoriamente a transitara a um subalterno chamado Fateh Khan. Aproveitando o vazio de poder, e num inesperado volte-face, esse muçulmano ao serviço dos portugueses declarou-se governador da ilha e, como primeira medida, limpou-a da presença dos soldados, respectivas mulheres e filhos, e ainda dos nativos recentemente convertidos à religião da Cruz. Ao largo, Sebastião Gonçalves e restantes rescapados de Dianga, sem grandes alternativas, optavam pela actividade corsária. Tinham como principal alvo os portos de Arracão, de onde traziam despojos destinados ao rei de Bakla, com quem mantinham relações amistosas.

O reino de Bakla abrangia todo o distrito de Bakarganj e uma parte de Daca. Determinado a neutralizar a actividade dos “ladrões do mar”, fiado no apoio de senhores afegãos e régulos hindus, Khan mobilizou toda a sua frota e, eivado de um súbito fervor jihadista, certo do sucesso, mandou inscrever nos estandartes o seguinte: “Fateh Khan, pela graça de Deus, Senhor de Sundiva, derramador de sangue cristão, e destruidor da Nação Portuguesa”. Tencionava Khan surpreender os portugueses na foz de um dos rios da ilha de Shabaspur, mas estes – oito dezenas de homens em dez embarcações –, previamente avisados da rival aproximação, estavam a postos. Feroz foi a luta e pela noite fora se prolongou. Embateram os primeiros raios de Sol nos corpos dos inimigos que pejavam os tabuados dos convés e a tona da água doce-salgada, constando Fateh Khan no rol dos fenecidos. Do lado de cá, distinguir-se-ia pela sua bravura, como nos dá conta António Bocarro, um certo Sebastião Pinto, “de quem todos gostavam devido à nobreza do seu carácter”. Foi a única vítima portuguesa. Até então, essa malta sem poiso certo aparentava não ter um líder reconhecido capaz de os treinar e disciplinar; porém, logo após o confronto nomearam para o posto Estevão Palmeiro, “um homem com anos de experiência e descrição”. Palmeiro negou a oferta – pois não queria estar à frente de homens que, apesar de bravos, mostravam-se impiedosos e gananciosos no seu comportamento – e achou ser esse um posto mais apropriado para o seu companheiro de armas Sebastião Gonçalves Tibau; e este, de bom grado, aquiesceu.

Como primeira medida, havia que recuperar Sundiva, cuja perda se atribuía ao descuido de Manuel de Matos. Para isso, Tibau arrebanhou nos portos vizinhos muitos outros portugueses à solta e selou um acordo com o rei de Bakla, segundo o qual este receberia metade das receitas da ilha a troco de ajuda militar, que se traduziria nuns quantos navios e duzentos cavalos. Em Março de 1609, ao comando de quarenta velas e quatro centenas de compatriotas, Tibau atacou Sundiva. Precavidos, os novos ocupantes, liderados pelo irmão de Fateh Khan, opuseram-se energicamente ao desembarque, mas viram-se obrigados a retroceder até ao interior do forte, onde permanecerem sitiados dois longos meses. Corria o risco de se gorar a operação portuguesa – devido à escassez de provisões e municiamento – quando, vinda de Hijili, chegou uma embarcação espanhola às ordens de Gaspar de Pina. Com a ajuda dos seus homens, e ao abrigo da noite, Pina ardilosamente urdiu um plano: reuniu grande quantidade de archotes que, secundados por gritaria e o troar de várias trombetas, produziu o efeito desejado: convenceram-se os sitiados que os portugueses tinham recebido reforços substanciais; e assim, nesse estupor, sinónimo de um baixar da guarda, o forte foi tomado e a tropa inimiga desbaratada.

Aos nativos da ilha, hindus, habituados ao senhorio português, exigiu Sebastião Gonçalves que lhe entregassem todos os muçulmanos ali residentes. Mais de um milhar foram depositados aos pés de Tibau que, impiedosamente, os mandou decapitar, vingando assim os mortos de Dianga e de Sundiva. Muito em breve era o português senhor absoluto da ilha, governando-a como um príncipe independente a quem ninguém pede contas; nem mesmo Hooghly ou Goa. Incontestado tribuno militar, Tibau tinha ao seu dispor mil soldados portugueses, dois mil nativos bem armados, duas centenas de cavalos e mais de oitenta navios providos de boas peças de artilharia. Sundiva era então importante e mui frequentado centro de comércio, tendo Tibau ordenado a construção de uma alfândega; os reis vizinhos, atónitos com o seu sucesso, procuravam agora a sua amizade, que ele de bom grado concedia; mas ao rei de Bhakla, de quem recebera tantos favores, tomou-lhe as ilhas de Shabaspur e Patelabanga, e não repartiu com ele, como houvera prometido, metade das receitas de Sundiva. Tibau apoderou-se ainda de terras de outros reis, e logo se viu senhor de vastas riquezas usufruindo de um poder que em nada ficava a dever aos de muitos príncipes de reinos vizinhos. Era um abastado e nada escrupuloso terratenente. Também com os seus, Tibau demonstrou não ser um homem de palavra. Aos capitães que o haviam ajudado a capturar Sundiva, retirou-lhes as terras pouco antes concedidas como prémio, fazendo com isso inúmeros inimigos. Aconteceria nessa época, entre o príncipe de Arracão (Min Khamaung, filho de Min Razagyi) e o irmão Anaporam, acesa disputa pela posse de um elefante branco – animal extremamente venerado entre os budistas – que levaria a um confronto militar, tendo dele saído vitorioso Min Khamaung. Expulso do reino, frustrado, Anaporam procurou apoio junto de Sebastião Gonçalves, que a troco da ajuda manteve como refém a filha do nobre arracanês. Marcharam em conjunto os dois exércitos, porém, face a uma força de oitenta mil homens e setecentos elefantes de combate, aperceberam-se que não teriam qualquer hipótese de sucesso e, por isso, volveram a Sundiva.

Na frente marítima, pelo contrário, António Carvalho, irmão de Tibau, com cinco navios capturou uma centena de velas inimigas. Na retirada para Sundiva, Anaporam, fez-se acompanhar pela mulher, família, tesouro e todos os seus elefantes. Curiosamente, Tibau casar-se-ia com a irmã de Anaporam, que entretanto abraçara a fé cristã. Pouco depois, morria Anaporam, e como Tibau se apressasse a apoderar-se de todos os seus pertences, nada deixando à viúva ou ao filho, suspeitou-se que havia envenenado o arracanês. A fim de acabar com o escândalo, Tibau tentou casar a viúva com o irmão António, almirante da sua frota, mas o plano falhou pois aquela se recusou a converter ao Catolicismo.

Foram muitos os casamentos entre aventureiros portugueses e membros da família real de Arracão. Tibau não só casou com a filha de Anaporam (Meng Phaloung?) que era, de acordo com Bocarro, o segundo filho de monarca que reinava em 1610 (Xalamixa I), mas também – como nos lembra Frei Sebastião Manrique – um filho de Tibau casaria “com a filha de Alamanja” a quem ele chama de “filho mais novo de Xalamixa I” (ou Xalamixa II num outra passagem). Falta saber se trata da mesma pessoa. Seja como for, a filha de Alamanja que casou com o filho de Tibau foi baptizada com o nome de Maxima. Após a morte de Alamanja os seus dois outros filhos seriam também baptizados – Martinho e Petronilha, respectivamente. Martinho seria educado pelos agostinhos em Goa e aos dezoito anos alistar-se-ia no Marinha Portuguesa na esperança de recuperar a coroa de Arracão que ele reclamava pois era “o legítimo filho de Alamanja, neto de Xalamixa II”. Martinho serviu na armada de Rui Freire de Andrade e também na frota de Nuno Álvares Botelho. Lutou no lado português contra o rei do Achém (1627-28) tendo sido ferido nessa batalha. Foi a Portugal aquando a aclamação de D. João IV (1640) e morreu na viagem de regresso à Índia. A sua irmã Petronilla morreu em Hooghly. Em jeito de curiosidade, acrescente-se que o filho de Brito e Nicote esposou a filha do rei de Martavão, e um outro dos seus filhos esteve prestes a casar com a filha de Anaporam.

Joaquim Magalhães de Castro

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