MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 17

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 17

O regresso a Sundiva

Deixámos o mês passado a tropa arracanesa vencida, de joelhos, mergulhada nas águas turvas do canal que separa Sundiva de Chatigão, sob o olhar desesperado de um Min Razagyi frustradíssimo com o desempenho dos seus capitães a quem ordenou que se vestissem de mulheres, tão fraco fora o seu desempenho, incapazes de trazer à presença do seu monarca um português rebelde que fosse, vivo ou morto.

O auto-intitulado “senhor do Elefante Branco”, também ele com inúmeros homens de armas portugueses no seu rol de pagamentos, ficara particularmente enfurecido pela inesperada conquista de Sundiva, até porque nessa mesma altura um dos seus capitães preferidos, Filipe de Brito e Nicote, antigo comerciante de sal, abusara gravemente da confiança nele depositada ao apoderar-se do entreposto de Sirião, que lhe fora oferecido como recompensa pelos serviços prestados. Da alfândega fez fortaleza ocupada, desafiando descaradamente a autoridade real. Na verdade, com essa atitude, Brito punha em prática um antigo projecto (por ele idealizado e com a cumplicidade dos seus homólogos mercenários) de criação de uma espécie de Estado da Índia alternativo no Golfo de Bengala com Chatigão e Pegu como pedras basilares.

Amedrontados face à legítima reacção de Min Razagyi – cuja capacidade militar era, recorde-se, ilimitada –, muitos comerciantes lusos de Chatigão reuniram os seus pertences e partiram rumo a portos mais seguros, acção que redobraria de intensidade após a chegada da segunda expedição arracanesa. Causaria idêntico pânico nas hostes locais o anúncio da vitória dos portugueses. Julgando que dessa vez estes marchariam sobre a cidade para se apoderarem dela por completo, os habitantes de Chatigão escapuliram-se. A própria rainha foi vista montada num elefante a transpor os portões da cidadela.

Contudo, e apesar da vantagem, não tirariam partido da situação os portugueses, como mais tarde iremos ver. No intervalo que mediou as duas investidas, em todos os bandéis e portos de Arracão abundaram bodes expiatórios no seio das lusitanas comunidades ali residentes, nomeadamente membros das ordens religiosas, agostinhos e jesuítas, que até então gozavam de plena liberdade proselitista. Houve quem tivesse a casa saqueada; houve gente torturada e encarcerada sem razão aparente. Felizmente não duraria muito a provação e, estabelecidas as tréguas, como nos dão conta os relatos dominicanos, Min Razagyi oferecer-se-ia para reconstruir as igrejas e residências derrubadas e pediu aos padres e frades que continuassem no reino. O mesmo se aplica, escusado será dizê-lo, aos mercenários, indispensáveis à manutenção do aparelho militar e que se encontravam naquela corte pelo menos desde o reinado de Min Ba-Gyi, senhor do Arracão de 1531 a 1554 e avô de Min Razagyi, cujo reinado testemunhou o surgimento desse país como potência regional. Ajudado pelas armas de fogo e os preciosos conhecimentos náuticos dos mercenários portugueses, Min Ba-Gyi estenderia as fronteiras do seu reino até à região de Bengala.

REGRESSEMOS, ENTREMENTES, A SUNDIVA

Pese a estrondosa vitória, Domingos de Carvalho sabia bem que seria incapaz de resistir a uma terceira investida dos arracaneses, mais do que previsível. Por isso, ordenou que se recolhessem aos navios maltratados todos os portugueses e cristãos locais e evacuou Sundiva de proas apontadas a norte, a Sripur, Bakla e Chandecan, onde estariam a salvo da vingança de Min Razagyi. Ficaria por completar a igreja que o jesuíta Blásio Nunes e três outros padres tinham começado a construir na ilha.

Carvalho escolheria como poiso o porto de Sripur (onde, curiosamente, reinava Kedar Rai) em direcção ao qual, muito em breve, velejaria o mogol Mandarai à frente de uma esquadra de cem velas, nada que assustasse alguém que meses antes se desenvencilhara de um contingente nove vezes superior. A frota mogol seria, de facto, aniquilada e o seu almirante, “valente homem, muito famoso em toda a Bengala”, morreria na operação, tendo sido atingido por um pelouro na refrega o nosso Domingos de Carvalho, que rapidamente cicatrizou a mazela. A recuperação de Sundiva passou a ser uma obsessão muito sua e para ir avante com ela o alevantado dirigiu-se a Hooghly em busca de apoio. Esta cidade estava no seu auge, se bem que os residentes vivessem sujeitos a pesados impostos e a constantes humilhações por parte dos mogóis, senhores daquele domínios. Sofria particularmente a afronta a gente recentemente convertida ao Cristianismo. Também ali se temia o ascendente poderio dos portugueses, daí que as autoridades tivessem mandado erguer fortaleza nas margens do rio onde foram estacionados quatro centenas de soldados.

Lembra-nos o padre Pierre du Jarric, na obra já aqui citada, o momento em que Carvalho passou em frente à fortaleza ao comando de trinta embarcações e sobre elas descarregaram seus arcabuzes os elementos da guarnição. De imediato saltou em terra o capitão Domingos seguido por oitenta soldados que escalaram as muralhas e se apoderaram do baluarte provocando tal mortandade que, garante du Jarric, “dos quatrocentos soldados apenas um cafre escapou através de um túnel”. Estes triunfos de Domingos de Carvalho dar-lhe-iam um estatuto de herói lendário que ecoaria nos recantos mais remotos de Bengala e do Arracão. Suscitava tal temor o seu nome que, certa ocasião, um comandante arracanês, responsável por meia centena de navios, ao revelar aos seus homens o sonho tido na noite anterior – sonhara que fora atacado por Carvalho – gerou um pânico tal que aqueles desertaram em massa, tendo o próprio, à custa disso, perdido a cabeça, decepada pelo cutelo justiceiro de Min Razagyi.

Ironicamente, idêntico trágico desfecho teria a carola do luso aventureiro, que assim, de forma inglória, terminou uma brilhante carreira militar. Eis o que se passou: Numa clara tentativa de ganhar a confiança de Min Razagyi – potencial aliado na luta contra o inimigo comum mogol – o poderoso hindu Rajá Pratapaditya, senhor de Chandecan e Jessore, convidou o português à sua corte e ali cobardemente o mandou assassinar, enviando depois a cabeça de presente ao monarca vizinho, que certamente terá apreciado muito mais esse gesto do que a periclitante posse de Sundiva, que, de resto, seria em breve reavida pelo companheiro de armas de Carvalho, Manuel de Matos. Quanto ao Rajá Pratapaditya (brilhante chefe naval competentemente assessorado por inúmeros oficiais e marinheiros portugueses) perderia em breve o reino para os mogóis, e passaria o resto dos seus dias enfiado numa jaula de ferro. Mas antes de tudo isso, o hindu ter-se-ia de ver com outro personagem português, como iremos ver mais adiante.

Joaquim Magalhães de Castro

 

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