O novo cardeal português
Homem da cultura do diálogo – poderia ter intitulado assim este texto, escrito muito mais como reflexão pessoal do que como quase-hagiografia do festejado, ou como uma sua nota biográfica. Daí o tom algo desordenado… que assumo.
A Igreja “portuguesa” vai ter um novo cardeal! O Papa anunciou-o da janela dos seus aposentos (que não ocupa) no Vaticano.
UM CARDEAL SURPREENDIDO…
E sem ar de cardeal. Esta referência vem a propósito, conforme com a de um Papa que recusa a pompa e circunstância que fizeram da cadeira de Pedro, tradicionalmente, mais um trono de rei do que uma cadeira de pai, um lugar à mesa da grande família humana.
O designado é o bispo D. José Tolentino Mendonça, ainda há pouco tempo consagrado bispo, numa missa celebrada pelo Senhor D. Manuel Clemente, nos Jerónimos.
A notícia propagou-se célere, o Presidente da República congratulou-se de imediato, outras personalidades portuguesas fizeram-no igualmente, e colegas e alunos da Universidade Católica não ficaram indiferentes, antes pelo contrário.
Se é evidente que os cardeais não são troféus dos países, como os escritores de Prémio Nobel ou os jogadores de futebol sempre campeões, qual é a família que não gosta de ver um dos seus filhos reconhecidos pelos melhores motivos? Sou pai, sinto o mesmo. E os países ou são grandes famílias ou não valem, não se afirmam como países.
E eu… o que fiz ao saber da notícia? Fui fazer duas coisas. Primeiro, situei-o na minha memória recente. E, depois, fui ver e ouvir o essencial da sua intervenção pública, desde debates com escritores, até ao seu curso sobre o Evangelho de São Mateus, Evangelho que depois li de novo numa assentada, como o professor Tolentino, o especialista de Teologia Bíblica, me recomendou.
Se Francisco não tem ar de Papa, se a sua áurea reside não no trajo branco, mas no seu sorriso tão acolhedor e na sua simplicidade tocante, Tolentino Mendonça não tem ar de Cardeal. O seu “quê de especial”, o seu encanto se se quiser, está na pessoa. Apenas na pessoa e é muitíssimo. No que lhe habita o espírito. Para aquém e para além da roupagem.
É que encontramos no próximo cardeal um homem de muitos caminhos e de muitos encontros, que o Sol queimou, que a chuva fustigou, e não o ser seráfico, quase transparente, que decénios passados em quartos sem luz dos seus locais de trabalho impediu que se expusessem ao Sol que queima, à chuva que molha e assim abençoam por igual, Sol e chuva, os homens comuns, seus irmãos.
Li que o padre Bergoglio, futuro Papa Francisco, dizia aos seus seminaristas, a quem enviava para visitas aos bairros de lata: a vossa ida de nada valeu se não trouxerdes os sapatos sujos de lama…
Padres de combate, queria formar Bergoglio. Será um cardeal de combate o madeirense de que vos falo, filho de gente modesta? Combate pela cultura e pelo diálogo com toda a sociedade, certamente!
Fiel a si próprio, Tolentino não deixará de enjeitar também o retrato tradicional, o do cardeal etéreo, seráfico. Será assim um cardeal de casaco e gravata? Sempre que o deixarem ou as circunstâncias o permitirem, estou certo. Porque, verdade seja dita, vivemos tempos muito difíceis, em que, se é necessário que o homem de Deus se distinga pelo trajo, é muito mais frequente a necessidade de se distinguir apenas pela mensagem pelo ensinamento, pela luz nova que traz ao debate de ideias.
SÃO AS PERGUNTAS QUE NOS SALVAM
José Tolentino Mendonça tinha que atrair a atenção do Papa. Não necessariamente para ser feito bispo e ainda menos (segundo um entendimento comum, carreirístico) cardeal, em tão pouco tempo. Mas para ser escutado. Mas para ser analisado, como pessoa e como sacerdote. De hoje, da Igreja deste tempo concreto. O nosso. Uma Igreja que precisa de pontes para o mundo, como de pão para a boca.
A urgência do Papa em saltar a lógica da carreira e de nomear gente da estirpe de um Tolentino está exactamente na necessidade absoluta de um diálogo com o mundo, por parte da Igreja, neste caso o mundo da cultura e da espiritualidade acrescida que tal abordagem (o mundo intelectual, o dos artistas, o das universidades, o dos debates de ideias) exige.
Nos Estados Unidos temos um exemplo semelhante em Robert Baron, comunicador extraordinário, cujas publicações em www.wordonfire.org(word on fire) cobrem um vastíssimo leque de iniciativas nos media americanos.
D. Robert Baron foi feito bispo para ser instrumento de uma tentativa de levar o Evangelho a uma cultura ateia, ou protestante anti-católica.
HOMEM DE ESPIRITUALIDADE E DE CULTURA
Conheci o então padre Tolentino aqui em Macau, numa sessão literária na Livraria Portuguesa. Falou de poesia, a sua, e da cultura em geral. Fiquei seduzido.
Fiquei seduzido pela sua palavra. Pela sua capacidade de, através de um poder imagético pouco comum, próprio dos poetas, jogar com as ideias e tentando fazer das palavras os pincéis com que acentua as nuances, na grande paleta de cores.
Porque nos domínios do espírito e da Fé, não há exactidão de linguagem que capte todos esses espaços, onde a ideia habita, mas a palavra é curta para lá chegar.
A Fala do Rosto
És Tu quem nos espera / nas esquinas da cidade / e ergue lampiões de aviso / mal o dia se veste / de sombra
Teu é o nome que dizemos / se o vento nos fere de temor / e o nosso olhar oscila / pela solidão / dos abismos
Por Ti é que lançamos as sementes / e esperamos o fruto das searas / que se estendem / nas colinas
Por Ti a nossa face se descobre / em alegria / e os nossos olhos parecem feitos / de risos
É verdade que recolhes nossos dias / quando é Outono / mas a Tua palavra / é o fio de prata / que guia as folhas / por entre o vento
Como, na verdade, dizer isto em prosa?
O QUE NOS SALVA SÃO AS PERGUNTAS
Como chegar a uma sociedade largamente descristianizada e mesmo ateia, se não se começar a caminhada (da busca do sentido da vida) pelas interrogações por que todos começamos?
Numa entrevista com o jornalista do programa de actualidade católica “Sete vezes Sete” e a propósito da publicação de um livro seu sobre o “elogio da pergunta”, o então padre Tolentino Mendonça sublinha a importância de nos questionarmos e questionar a vida, como primeiro passo para caminhar para Deus.
Contrapondo a garantia de ter certezas à capacidade de formular perguntas, o padre Tolentino como que nos ensina o caminho para lidar, de modo muito simples, com o mundo do nosso tempo. Aceitando e partilhando o mesmo exercício da inteligência humana, fazer perguntas. Não ocultando as respostas que tem, que temos como crentes, mas detendo-nos no preparar da consciência para essas respostas – formulando perguntas.
De um modo mais focado nos cristãos, o que é para Tolentino Mendonça uma espiritualidade do tempo presente?
Melhor do que as minhas palavras, com que concluiria este texto, ouçam no Youtube o seguinte pequeno documentário, com uma sua intervenção no Instituto Loyola, no Brasil: “Espiritualidade como interioridade”. Fechar a porta dos sentidos e procurar Deus no profundo de nós.
Ouçam então o que o cardeal designado diz, num curto comentário que é importante recuperar: https://youtu.be/wyOaiWX8OQ0
Carlos Frota