MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 16

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 16

Os dezasseis navios de Domingos de Carvalho

Da ancestral Chatigão (Chittagong), onde os portugueses usufruíam de um entreposto permanente cedido em 1537 pelo mogol Mahmud Shan em troca dos seus serviços bélicos, teceu Luís Vaz de Camões, no Canto X dos Lusíadas, os seguintes versos: “Vê Chatigão, cidade das melhores/ De Bengala, província que se preza/ De abundante; mas olha que está posta/ para o Austro d’aqui virada à costa”. Continuaria esta cidade costeira sob o controlo lusitano durante muitos e bons anos, sendo comprovativos dessa realidade testemunhos de gente como o transalpino Cesare Federicique em 1569 viu ancorados ao largo dezoito navios portugueses, sinal de uma clara pujança mercantil.

Ali envidavam esforços, tanto a oficialidade prestadora de contas a Goa, como uma diversa plêiade de mercenários e aventureiros arbitrariamente dispensando serviço militar a senhores locais ou livremente exercendo corso por conta própria, nas costas de Bengala mas também nas de Arracão, mais a sul, onde viriam a encontrar couto conveniente na ilha de Sundiva (Sandwip), famosa pelo seu sal, onde, de resto, desde a passagem da armada de António de Sousa Godinho, que a fez tributária, algures na década de 1580, operavam mercadores portugueses privados. Estes e os oficiais, acabariam por desalojar do seu confortável posto as famílias afegãs ali dominantes nos assuntos do trato que em vão tentaram evitar a indesejada presença estrangeira, cientes do quão útil era Sundiva enquanto trampolim para chegar ao continente. Razão tinha, pois, Sousa Godinho em aproveitar a sua turbulenta visita para reassegurar o controlo da alfândega e, dessa feita, tomar pela força a fortaleza de Chatigão, assente no outro lado do canal. A virulenta incursão no delta gangético por parte deste capitão português caracterizou-se por actos de torpe crueza, fosse para – como dá conta ao rei a partir de Goa o escrivão Duarte Delgado Varejão – “recolher naquele forte [Chatigão] os portugueses que andavam derramados em diferentes lugares daquela costa”, fosse para acabar com “as injúrias que os portugueses padecem em algumas terras que estão senhoreadas pelos mogores”.

Aproveitando-se das intestinas quezílias mogóis, Godinho subiria o Hooghly até Satigão (Satgaon), e dali, pelos meandros aquáticos, penetraria trinta léguas para o interior em direcção a Tanda, capital da província, queimando povoações e celeiros, derrubando palmares e arecais, tendo inclusive, como especifica o cronista, “cortado as pernas a oitocentos bois” e “matado muita gente”, para assim, com essa posição de força, intimidar os dirigentes mogóis antes de, com eles, assentar as pazes, essenciais ao bom comércio. O historiador Aniruddha Raycita um proprietário rural da região chamado Mukundaram Chakravarti que num dos seus poemas recorrentemente menciona os portugueses, apelidando-os de “harmada”, lembrando-nos ainda que a partir dessa altura encher-se-iam os templos com “placas de terracota representando navios e marinheiros portugueses”, como são exemplo disso os santuários de Banberia, sobre os quais já aqui falámos.

Convém recordar que a autoridade imperial de Akbar, neste distante rincão oriental, pouco riscava e quem, de facto, exercia o poder era uma miríade de pequenos rajás locais orquestrados pela batuta de um muçulmano bengali chamado Isa Khan. Os portugueses, nestas paragens abundantes, iam fazendo pela vida, arquitectando alianças e servindo os exércitos dos senhores que mais lhes convinham. Muitos renegavam a fé e a nacionalidade, integrando-se sem grandes dificuldades na sociedade muçulmana local, sendo frequentes as escaramuças entre ex-compatriotas. António de Sousa Godinho foi encontrá-los em Satigão pagando alegremente os impostos aos mogóis que lhes arrendavam as terras, e quando os tentou transferir para Chatigão (pois ali estariam sob a jurisdição de Goa) estes pegaram em armas e aliaram-se aos seus senhorios repudiando com veemência o ousado ensaio de controlo dessa região por parte do vice-reinado. Não raras vezes foram estes soldados da fortuna essenciais para o desequilíbrio de muitos pratos de balanças. Graças à sua ajuda, por exemplo, conseguiriam os senhores de Tripura, em 1586, subtrair Chatigão aos arracaneses; porém, também estes contavam com apoio militar de mercenários portugueses que dois anos depois nos ajudariam a recuperar essa cidade que doravante, e durante quase um século, permaneceu na posse do reino de Arracão.

Acantonado em Sundiva, António de Sousa Godinho temia o poder crescente dos arracaneses, e razão tinha para tal, sendo o seu exercício de poder sol de pouca dura. O jesuíta francês Pierre Du Jarric que, no remanso de uma biblioteca de Toulouse, ou de Bordéus, compilou a história desta região no século XVII recorrendo a fontes portugueses e castelhanas – sobretudo a obra do padre Fernão Vaz Guerreiro “Relação Annual das cousas que fizeram os Padres da companhia de Jesus na Índia e Japão, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné” –, conta-nos que Kedar Rai de Vikramapura, uma verdadeira lenda local, arrecadaria Sundiva das mãos de Godinho (possivelmente com a ajuda de um contingente de mercenários portugueses), mas perdê-la-ia para os arracaneses que, em 1602, se viram obrigados a entregá-la ao aventureiro Domingos de Carvalho. Na verdade, a ilha seria repartida entre este alentejano de Montargil, imortalizado – por razões que iremos mais tarde apresentar – na literatura bengali, e o seu compatriota Manuel de Matos, capitão dos portugueses de Dianga, bairro da parte sul de Chatigão, que veio em seu socorro na companhia de quatrocentos homens, pois os habitantes de Sundiva se mostraram hostis à presença de Carvalho. Vitoriosos, os dois companheiros de armas dividiram a ilha entre si, e, para impressionar o vice-rei, jurarem fidelidade a Coroa e em nome dela exerceram a autoridade, atitude que lhes valeria o título de “Fidalgos da Casa Real” e o hábito da Ordem de Cristo.

Receoso do crescente poder destes ambiciosos homiziados (nesta mesma altura fincava-se de pedra e cal em Sirião, reino do Pegu, o não menos conhecido aventureiro Filipe de Brito e Nicote), o monarca de Arracão, Min Raza Gyi, também como Salim Shah, o Xilimixa das nossas crónicas, expediu uma armada de cem velas equipadas com canhões – na qual certamente figurariam numerosos mercenários portugueses – pronta a desalojar os estrangeiros da tão apetecida ilha; recorde-se, a principal abastecedora de sal de Bengala. Dianga sofreu na pele a primeira investida arracanesa, pelos vistos bem sucedida apesar do atacante registar perdas significativas e do lado de Dianga apenas um defensor ter perecido.

Festejavam ainda os arracaneses a captura de quatro embarcações portuguesas quando, vindo de Sundiva, apresenta-se Carvalho; e com reforços. Num fulminante ataque surpresa matinal apodera-se de todos os 149 barcos do opositor, assim como das munições, mosquetes, arcabuzes e diverso outro material de guerra. No final, entre os mortos encontrava-se o tio de Min Raza Gyi e, certamente, alguns mercenários portugueses, pois sempre os havia, dum lado e do outro, neste género de conflitos tão habituais em tais paragens.

Receoso do crescente poderio dessa destemida casta de alevantados, o rei de Arracão tratou logo de organizar nova ofensiva, muito maior ainda, para assim se poder desforrar. Dessa vez, também ele participaria na empresa. Avisado, Carvalho tentou congregar o maior número de guerreiros possível mas, apesar dos esforços, só conseguiu reunir dezasseis navios cuja soma de guarnições não chegava aos quinhentos homens. Numa manhã de Março de 1603 era avistada ao largo de Sundiva uma floresta de mil mastros, correspondendo a outras tantas embarcações. Carvalho não hesitou. Sem temor, partiu ao encontro do adversário. Sabia que podia contar com os seus homens, poucos mas bons, todos eles veteranos na arte (se é que se pode chamar assim) da guerra.

Seguiu-se estrondosa fuzilaria da qual, apesar de muito inferiores em número, os portugueses tiraram vasto proveito. Tão compacta era a massa humana diante de si, que não houve um único tiro desperdiçado. Acresce o facto de, a acreditar no cronista, estarem ali “as melhores espingardas que havia na Índia”. Afundadas as embarcações da primeira linha, receberam igual sorte as de trás, e assim sucessivamente. Da uma da tarde até ao anoitecer, sucessivas vagas de navios arracaneses vieram desfazer-se de encontro à praia de fogo amanhada pelos artilheiros portugueses. No final, exaustas as forças, o rescaldo indicava a perda de 130 embarcações arracanesas, afundadas “a tiro de canhão” ou “incendiadas com lanças de fogo ou panelas de pólvora”, e a morte de cerca de dois mil homens. Por mais incrível que pareça, do lado português, não se perdeu qualquer navio e houve somente seis ou sete baixas, facto que mereceria do comandante Saturnino Monteiro, autor do “Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa”, valiosa obra em vários volumes, o seguinte comentário: “dificilmente se encontrará outra batalha naval em que a desproporção de forças tenha sido tão grande e em que, apesar disso, a armada menos numerosa tenha conseguido repelir o adversário”.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *