MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 15

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 15

As teias que o Império Sombra tece

Os assentamentos portugueses em Tribeni e em Bansberia (cujo templo do século XVIII preserva a memória da nossa passagem em forma de altos-relevos, como aqui lembrámos há duas semanas) datam de um período muito anterior à autorização concedida pelo imperador Akbar a António Tavares em 1579, que, em boa verdade, doravante sancionaria todo o comércio luso na região. No entanto – como também já aqui vimos – há muito que os portugueses comerciavam em terras de Bengala. A narrativa do viajante Cesare Federici demonstra que o entreposto antecedente, em importância, ao de Bandel, situava-se algures entre Adi Saptagram e o leito agora seco do rio Sarasvati. Era para aí que, em pequenos barcos, os portugueses transferiam as suas mercadorias armazenadas nos porões das naus ancoradas no Hooghly ao largo de Bettore, povoação oposta a Howrah – ambas na actual área urbana da grande Calcutá. Bettore acabaria por ser favorecida, em detrimento de Tribeni, devido à ocupação deste território pelo rei de Orissa, entre 1560 e 1567.

A histórica chegada de Vasco da Gama a Calecute em Agosto de 1498, seguido do desembarque lusitano em Bengala, menos de duas décadas depois, culminaria uma meticulosa operação de uma busca directa das fontes das especiarias asiáticas capaz de contornar a teia urdida por venezianos e árabes, monopolizadores das ditas e todas as outras riquezas exóticas. A caravela e o quadrante, fundamental para determinar a latitude, foram dois grandes aliados do Infante e de D. João II e a conquista de Malaca, em 1511, encorajará os portugueses a deslocarem-se pelas restingas, enseadas e promontórios da Baía de Bengala, onde a oferta do arroz e dos têxteis, indispensáveis à sobrevivência da nova praça-forte, estava sempre assegurada. O primeiro contacto com Bengala acontece entre 1512 e 1513, e já no mapa da Ásia desenhado em 1516 por Diego Reinel surge um esboço da costa desta vasta área, embora nele não constem as ilhas e os portos – possivelmente ainda desconhecidos dos portugueses.

A nomeação de Lopo Soares de Albergaria como governador, após a morte de Afonso de Albuquerque, marca o fim das actividades comerciais controladas pelo Estado e o início de uma política liberal de comércio perfeitamente encarnada nas figuras de Martim Lucena, morador em Gaur (a capital de Bengala) e João Coelho, o primeiro português a navegar no Ganges, em 1516. Coelho encontrava-se ao serviço de Giovanni da Empoli, abastado comerciante florentino há muito radicado em Lisboa. Quanto a Lucena, seria provavelmente um renegado, convertido ao Islão, à semelhança de tantos outros aventureiros que por ali andavam almejando acima de tudo o lucro próprio e jamais o interesse comum. Atento ao novo mercado, Lopo Soares decide enviar uma frota oficial de quatro navios comandados por João da Silveira, que chegam a Chittagong em 9 de Maio de 1518. Não gostaram nada de sentir por perto a presença da Coroa, os mercadores ali estabelecidos; e, em breve, presenciaremos períodos intermitentes de escaramuças e entendimentos entre estes “lançados” e os homens do governador. A situação complicar-se-á quando Silveira decide ignorar o pedido de ajuda do rei de Arracão, ansioso por retirar Chittagong das garras do sultão de Bengala, apontando em vez disso as velas ao Ceilão. Terminaria assim, sem qualquer resultado nem prestígio, o primeiro contacto oficial português na Baía de Bengala, definitivamente fadada para se transformar em zona de eleição para gente homiziada, as tais “balas de canhão” mencionadas por um eminente historiador que estariam na origem do designado Império Sombra.

O sucessor de Soares na cadeira de Goa, Diogo Lopes de Sequeira, embora se mostrasse mais interessado na costa do Coromandel e no Pegu não deixou de expedir para Gaur e Chittagong, em 1521, três navios. Comandava-os António de Brito e Diogo Pereira, portadores de uma carta de Soares endereçada ao sultão de Bengala, juntamente com presentes e mercadorias para venda. A sua missão, porém, seria dificultada pela inesperada chegada de uma outra comitiva portuguesa liderada por Rafael Perestrelo, que aportou a Bengala por ter perdido a monção para a China, viagem que lhe fora concedida em 1519, e que não chegaria a efectuar pois, em 1522, o relacionamento entre portugueses e mandarins de Cantão entravam em ruptura. Abre-se aqui um parêntesis para o cronista João de Barros (1496-1570) informar-nos das suas divagações sem rumo definido nas ilhas de Andamão, tendo sobrevivido a uma incursão nesse território habitado por canibais.

Cristóvão Jusarte, representante de Perestrelo, tinha ido a Gaur tentar obter uma redução do imposto alfandegário, objectivo que o braço de direito de Brito e Pereira, António Tavares, tentaria suplantar pedindo a isenção total do pagamento desses direitos. A presença em Bengala de duas embaixadas, ambas com estatuto oficial mas objectivamente interessadas no proveito próprio, confundiu os monarcas locais e gerou conflito entre os protagonistas, tendo o influente comerciante turco Agha Khan tomado o partido de Rafael Perestrelo. Entretanto, na Corte de Gaur, Jusarte conseguira persuadir os funcionários a considerar o intérprete de Brito e Pereira como espião, muito embora este tenha conseguido sair de Bengala com a promessa de que os portugueses ficariam isentos do pagamento de direitos alfandegários. O feito encorajaria uns e outros, privados e funcionários do Estado da Índia, a enviar navios a Bengala com mais regularidade. E eles digladiavam-se, não raras vezes com violência.

Em 1526, desembarca em Chittagong Rui Vaz Pereira e de imediato saqueia o navio do comerciante persa Khwaja Shahabuddin, cuja amizade com o governador de Chittagong provoca represálias da parte das autoridades locais. Aliás, o inevitável envolvimento dos portugueses na política local daria origem a diversos mal entendidos. Em 1528, Khuda Baksh Khan ordena a prisão de um grupo de portugueses que, vítimas de um naufrágio, tinham ficado retidos no distrito de Chakaria, em Chittagong. Dado que falharam as negociações para a sua libertação, encetadas por Martim Afonso de Melo Jusarte, capitão de Ormuz, aqueles tentaram escapulir-se, mas sem sucesso. Entre eles estava o sobrinho de Melo Jusarte que, juntamente com os restantes prisioneiros, seriam resgatados por um comerciante chamado Sahabuddin na condição de este conseguir ajuda de Goa na sua campanha contra o sultão de Bengala Nusrat Shah, que faleceria antes da armada de cinco navios liderados por Melo Jusarte ter chegado a Chittagong. Jusarte tratou logo de enviar emissários ao novo sultão, Ghiyasuddin Mahmud Shah, para conseguir um acordo, mas este acusou-os de saquear um navio muçulmano e mandou prendê-los. Cinco deles seriam executados; os demais, enfiados numa masmorra em Gaur. De Goa sairia uma expedição encarregada de os resgatar, mas as negociações gorar-se-iam e Jorge Alcandorado, que liderava essa delegação, escapou por um triz depois de atear fogo à cidade.

O aparecimento em cena de Sher Shah Suri, fundador da dinastia Suri, veio alterar radicalmente os acontecimentos. Face ao novo perigo, Ghiyasuddin Mahmud Shahencetou negociações com Diogo Rebelo (costumeiros nos meandros do Ganges e dos bazares de Gaur) e decidiu libertar os prisioneiros na condição de estes o ajudarem militarmente na batalha contra o exército de Sher Shah. De pouco lhe valeu a ajuda, pois o apetite bélico do general só seria saciado, ou seja, só levantaria o cerco a Gaur, após ter recebido treze lakhs de moedas de ouro, prontamente pagas por Mahmud apesar das reticências dos seus conselheiros portugueses. Estes, estavam agora autorizados a construir feitorias e moradias em toda a Bengala. Citemos aqui os exemplos de Nuno Fernandes Freire, que em Chittagong tinha autoridade para colectar as rendas das casas, e de João Correia, responsável pela alfândega de Satgaon.

Sher Shah regressaria a Gaur com nova chantagem na manga pronto a confrontar-se com reforçada resistência de Mahmud; contudo, a esperada ajuda vinda de Goa chegaria tarde demais para salvar o sultão moribundo, cuja morte selaria para sempre a dinastia afegã de Hussain Shahi. Apesar dos desaires, Satgaon e Chittagong permaneceriam sob controlo português, embora neste último caso esse controlo se mostrasse efémero pois, desde meados do século XV, essa cidade conhecida entre os portugueses como Porto Grande tornara-se o pomo da discórdia entre os reinos de Arracão, Tripura, Bengala e da Birmânia.

Joaquim Magalhães de Castro

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