MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 13

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 13

Estórias de Bandel e o mordomo Duke

A prova da predominância lusófona na comunidade católica do Bangladesh está bem patente no livrinho de Religião e Moral para adolescentes do oitavo ano, “integrado no currículo nacional”, que me mostram o padre Ribeiro e uma freira sua parente enquanto todos aguardamos o embarque para Calcutá na sala de espera do aeroporto de Daca. São seus autores a irmã Shikha L. Gomes e os padres Anal Terence Costa, Ashim T. Gonsalves e Robert Thomas Costa, com edição do cónego Adam S. Pereira e tradução do reverendo Edward Ayub e da senhora Rita Josephine Rozario.

O voo é breve e a Bengala indiana com que me deparo, assim de rompante, logo após o interregno Bangladesh, mais parece um oásis de modernidade, ordem e asseio, vendo eu substituídas, como por milagre, as prateadas caleches e os alegres riquexós pelos rotundos e afirmativos táxis Ambassadores pintados de amarelo-torrado.

Um homem com o mão espalmada pousada no peito virado para a torre de uma igreja é o primeiro sinal de cristandade da tão ansiada Hooghly, cidadezinha situada a meia centena de quilómetros de Calcutá que tem em Bandel o seu mais antigo e característico bairro, de resto, bem assinalado pela torre sineira da igreja de Nossa Senhora dos Navegantes. Mas que decepção aquela fachada totalmente descaracterizada! Talvez explique o olhar particularmente triste da Virgem Maria com o Menino no regaço – levitando sobre um barco com três mastros e tendo a seus pés as cabeças e as asas de três seráficos anjos – pintada no pórtico da entrada. Aí mesmo nos recebe Duke, eurasiático de origem irlandesa, magro e sorridente. Traz a tiracolo, sobre a camisa branca, uma fita azul celeste que em mim evoca as dos mordomos pascais de Larantuca, na ilha indonésia das Flores. É ele o guardião da igreja de Bandel e, orgulhoso, lesto se presta a mostrar-me as instalações desse templo erguido em 1599 e, mais tarde, após a destruição provocada pelos mogóis, em 1640, reconstruído do nada, provavelmente nos terrenos de um antigo convento de agostinhos, isto “durante o pontificado de Urbano VII”, como indica elucidativa placa de mármore.

A igreja, consagrada pelo jesuíta belga Ferdinand Perier, arcebispo de Calcutá, a 16 de Março de 1952, foi ao longo dos tempos recebendo “melhoramentos” que lhe tiraram toda a graça. Melhoramentos, quer dizer, soezes patifarias arquitectónicas, por certo bem intencionadas, porquanto de ignorâncias se fez o inferno cheio, mas nem por isso deixam de ser soezes patifarias. Enfim, transformaram o histórico padrão num exemplo de mau gosto forrado a placas de falso mármore que pretende imitar laterite. Santos nos nichos há-os de sobra, mas é São João Bosco (os salesianos ficariam com a tutela do local em 1928) e Santo António, lado a lado, decorados com grinaldas de flores, quem predomina em número e estilo. Uma lojinha de artigos religiosos a meio do longo corredor com pinturas evocativas de diversos episódios bíblicos (tentações do diabo bem explícitas) serve de ponto de encontro aos hindus que demonstram vontade de se tornarem cristãos. «Sentem-se bem entre nós e pedem para aderir à nossa fé», especifica o indo-irlandês. «Para saber se são sinceros na sua escolha perguntamos-lhe qual a paróquia onde residem, e isso desmascara possíveis impostores», pois se há verdade nas suas intenções contactos prévios terão tido junto da gente cristã da sua terra. Duke destaca o caso de um indivíduo que, confundindo o termo “parish” com “Paris”, prontamente respondeu que era da Índia e não de Paris. «Pedimos-lhe sempre que façam o sinal da cruz, pois muitos assistem à missa e recebem a comunhão apenas pelo colorido da coisa, atraídos pelas cerimónias e os belos cânticos». Serve, por isso, de conveniente e necessário filtro, esse centro de recrutamento onde os neófitos são elucidados sobre os mistérios do Cristianismo.

No interior da nave principal, também forrado a mármore falso, escapou à vaga de “melhoramentos” um altar azul e dourado que se vê bem ser antigo. Ladeia-o um Dom Bosco de sotaina negra acompanhado por dois dos seus alunos, e à sua frente apresenta-se um colorido Fernando de Bulhões dando colo ao Menino. Mas é para a estátua de São Tiago – de chapéu, vieira, cajado e um cão aos pés – «oferecida pelos portugueses antes de terem deixado a Índia», que o irlandês nos chama a atenção. Garante-me ser essa a primeira figura de um santo com lugar cativo nos altares de Bandel. A placa informativa fala apenas Bengali, pelo que mais nada posso comprovar. Nova chapa, desta vez versada em Latim, eterniza o nome de Joseph Sancto Agustino Gomes, pároco local falecido em 1869. O altar, com um Cristo de braços abertos exibindo a bandeira vermelha e branca da Ressurreição em frente ao sacrário, explode de cor e é o único pedaço original de todo o conjunto. Chamam-me a atenção as vestes que cobrem as coroadas esculturas de Nossa Senhora da Boa Viagem e do Menino, onde é notório o toque oriental, certamente fruto dos contactos regulares que Macau mantinha com os restantes entrepostos asiáticos, e não só. Dali espreito a sacristia onde deparo, sem grande surpresa, pois sabia-o por estas paragens, com o nosso já conhecido padre Ribeiro a oficiar uma missa privada para a sua irmã freira e uma belíssima rapariga que mais tarde virei a saber que é sua sobrinha e se chama Jasmine Gomes. Mais um Gomes a juntar à galeria do apelido português mais comum neste recanto do subcontinente.

Duke prossegue com a visita e menciona, também ele, a tradição local de fazer pedidos a Santo António quando se pretende encontrar algo que se perdeu, atributo que em toda a Bengala se acrescenta à mais comezinha função casamenteira do patrono de Lisboa. Num momento particularmente difícil da sua vida o indo-irlandês pediu ao santo que o ajudasse e, pouco tempo depois, um amigo oferecia-lhe trabalho num cargueiro e assim pôde sobreviver. Desde então, Duke passou a venerar o santo que também é de Pádua, oferecendo-lhe pão todas as terças-feiras, alimento que depois de abençoado ele entregue à sua família para que o consuma. Também a Virgem, «a Nossa Senhora de Bandel», como lhe chama, merece orações matinais diárias. E eis-nos de novo no exterior, junto a um antigo cemitério que Duke diz ser português, embora sejam ingleses os nomes inscritos nos sepulcros, à excepção de um Cruz destrambelhado. Ao lado, noutra pequena necrópole, repousam os restos mortais dos salesianos transalpinos em cujas lajes protectoras acendem velas com frequência os fiéis locais. Reparo então que numa dessas lajes vem esculpida uma chave. «É a chave do paraíso e do purgatório», diz Duke, «pois se vais para o paraíso tens de passar primeiro pelo purgatório». Pela designada «porta portuguesa» temos acesso à capelinha de Nossa Senhora da Boa Viagem, num terraço do piso superior. Este é local mais visitado pelos peregrinos e há entradas separadas para homens e para mulheres. «Mesmo sem entenderem o que fazem, os hindus locais prestam aqui homenagem a Nossa Senhora», informa Duke, que me fala depois do episódio do navio português em perigo na barra de Bengala e o rogo do seu capitão em desespero prometendo um templo à Virgem em caso de salvamento. «E a Senhora ouviu-o, aproximou-se e salvou o navio e toda a guarnição daquela terrível tempestade», sumariza o gentil Duke. O mastro desse navio, oferecido a Bandel pelo agradecido marujo, esteve erguido durante séculos à entrada da igreja até ser derrubado por uma árvore arrancada do solo pelo ciclone que devastou a região em 2010. E em vez de ser reposto no local onde sempre estivera, seria infamemente depositado, agora em dois pedaços distintos, no interior duma caixa envidraçada acoplada ao muro lateral da igreja, uma coisa sem pés nem cabeça que passa despercebida aos mais desatentos.

No terraço, com vista privilegiada para as margens do rio Hooghly, Duke aponta para o local de desembarque agora assinalado por uma enorme cruz e variada estatuária dourada evocativa da Via Sacra. Uma série de vitrais pintados, ao jeito das tiras de banda-desenhada, conta-nos a história do cerco à cidade, em 1632, na qual morreram quatro dos cinco padres ali residentes; do caso do marinheiro Tiago que, trespassado pelas flechas mongóis, desapareceu nas águas do Hooghly agarrado à estátua da Virgem de Bandel, de quem era ardente devoto; e ainda do episódio da sua posterior descoberta, aquela que é considerada pelos cristãos locais como “o retorno da Virgem”, pelo frade João da Cruz, isto pouco tempo antes da chegada do navio português milagrosamente resgatado da tempestade.

Joaquim Magalhães de Castro

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