MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 12

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 12

Uma vasta rede de portos e feitorias

Sripur, a sul de Sonargaon, sede dos reinos de Chand Rai e Kendra Rai, era conhecida por alguns autores como Sherpur Feringhi, sinal da importância da presença portuguesa naquelas paragens. Em 1586, o viajante inglês Ralph Fitch anotava no seu diário que tinham “autoridade absoluta sobre esse porto”, tendo ele próprio viajado do Pegu a Sripur num navio pertencente a um certo Alberto Carvalho. Outro importante entreposto era Chandecan, onde os jesuítas construiriam a sua primeira igreja, inaugurada a 1 de Janeiro de 1600. Muita da informação disponível sobre esse local deve-se às cartas de frei Francisco Fernandes e confrades, pois ali desempenhavam labor missionário a convite do próprio rei. Mas tempos complicados se avizinhavam pois esse soberano, que sempre os favorecera, cedo trocou de posição e, para agradar o congénere de Arracão, mandou assassinar um dos mais destacados membros da comunidade, o galante e alevantado capitão Domingos Carvalho.

Também em Bakla tínhamos feitoria e a dela ouviríamos falar graças aos relatos do padre Melchior Fonseca, desembarcado em Bengala, em 1599, sob o manto protector de um príncipe hindu favorável à presença lusa. Fonseca e a outros padres da Companhia de Jesus puderam assim pregar e erigir igrejas. Havia já ali uma colónia liderada por alguém a quem chamavam “o Capitão”, e que há décadas não recebia a visita de um sacerdote.

Em Catrabo, Francisco Fernandes ressalta a presença de uma forte comunidade muçulmana “receptiva aos ensinamentos cristãos” e convencida até da “veracidade da nova lei”, embora se mostrasse renitente à conversão. Não obstante, influente se mostraria a comunidade portuguesa entretanto ali estabelecida.

Loricul, a umas 28 milhas a sul de Daca, era outro dos estabelecimentos portugueses. Aparece grafada no mapa de Van den Broek (1660) como “Noricoel” e é assinalada por uma cruz, de resto como os restantes lugares cristãos identificados. Thomas Henry Digges La Touche, autor de vasta obra geográfica e geológica, sugere que o lugar deve o nome ao vice-rei D. Luís Carlos Inácio Xavier de Meneses, mais conhecido como Marquês do Louriçal, responsável pelos destinos da Índia Portuguesa entre 1741 até 1742, embora o jesuíta flamengo Henri Hosten, profundo conhecedor da Índia, atribua ao local bem maior antiguidade. Aqui terão erguido os agostinhos uma igreja, algures no fim do século XVI. Segundo o testemunho de Sicardo, historiador-mor dessa congregação, em 1682 ela mantinha-se ainda de pé, mas o geógrafo britânico James Rennell avistara apenas, a 14 de Fevereiro de 1756, “as ruínas de uma igreja portuguesa e outros amontoados de tijolo”. Nicolau de Paiva, protector dos jesuítas, viveu em Louricol em 1657, e consta que terá sugerido ao vice-rei que lhe enviasse a devida assistência, navios e soldados, para se apoderar das vizinhas ilhas de Kegeria e Ingelee.

Era Bhulua um principado independente e importante colónia de portugueses no século XVII, onde havia também muitos convertidos, gente influente na sociedade local. O holandês Glanius, que nos deixou um relato cru do naufrágio do navio Terschelling, diz a esse respeito: “A guarda pessoal do príncipe consiste inteiramente em cristãos que são tidos em grande estima e muitos deles são de raça negra, não obstante, súbditos do rei de Portugal, e considerados como companheiros corajosos, tidos em grande respeito, e até os grandes da corte de tal modo prezam a sua companhia que lhes transmitem tudo o que é decidido em Conselho”. Esta descrição diz bem do processo de miscigenação já presente entre os portugueses da Ásia e da sua singularidade, pelo menos de uma aparente ausência de discriminação racial. Nada como ler aquilo que os estrangeiros escreviam sobre nós. Tal era o nosso prestígio e influência que muitos dos habitantes de Bhulua falavam o idioma de Barros e Castanheda. Comprova-o o seguinte comentário de Glanius: “Compramos leite e arroz que guardamos num pote que nos emprestaram alguns mouros que falavam português”.

Hijili (Angelim), considerado um dos mais antigos estabelecimentos europeus em Bengala, viu durante muito tempo uma vasta faixa do seu território ser designada de Feringhee Desh, ou seja, “terra portuguesa”. O sufixo “desh”, palavra indo-ariana que se pode traduzir por “país”, aparece nos nomes de muitas regiões e países, especialmente no sul da Ásia e no Sudeste Asiático, como é exemplo o Bangladesh. Uma passagem do livro sagrado Chandi, datado de 1577, revela o receio “do poeta e o seu companheiro” (protagonistas dessa obra) perante a probabilidade de vir a encontrar “harams” (ou seja, “proibido”, pejorativamente aplicado aos feringhees) e, por isso, “remaram dia e noite e só ao cabo de vinte dias” se sentiram, enfim, seguros. Ou seja, se os barcos levavam vinte dias imagine-se quão considerável seria a área sob controlo português. Na viagem de regresso, o bardo refere um outro Feringhee Desh, desta feita na costa de Orissa, onde visitaram o templo de Jagannath Puri, ainda hoje local de culto hindu imensamente concorrido. Os agostinhos ergueram aí duas igrejas, ambas dedicadas a Nossa Senhora do Rosário. Em 1582, contava já com trezentos paroquianos “com idade para receberem a santa confissão”. Sicardo indica ainda um outro templo, na aldeia de Banja, dedicado a Nossa Senhora da Salvação. Diz Sebastião Manrique que viviam aí cerca de meio milhar de cristãos “e muita outra gente de comércio” que demandava aquele porto apesar da insalubridade do clima. A igreja fora pensada para assistir espiritualmente os mercadores que ali transacionavam “açúcar, cera e guingones, que é uma espécie de pano feito da erva yerua e seda, roupa apropriada para o calor do Verão”.

O administrador colonial William Hedges lembra no seu diário o afastamento dos portugueses de Hijili em 1636 pelos mogóis, numa altura em que eram frequentes razias piráticas ao longo da costa obrigando as populações ribeirinhas a penetrar no interior. Nas primeiras décadas do século XX, várias ruínas de edifícios portugueses faziam parte da paisagem local. A algumas milhas de Geonkhali situa-se Merepore, conhecida ainda como Feringhi Para, onde um grupo de missionárias deparou, em 1838, com alguns cristãos que se diziam descendentes de portugueses de Goa a quem fora atribuída aquela terra como recompensa pelos serviços prestados ao rajá de Mysadal.

Na região de Midnapore os portugueses mantinham importante assentamento em Tamluk, porto da antiguidade cuja relevância esmorecera por volta do século X devido à sedimentação do canal que o ligava ao mar. Essa feitoria perduraria após os portugueses terem abandonado Hijili. Também em Tamluk foi erigida capela, em 1635. François Valentyn, afamado naturalista e pastor holandês fala-nos de duas aldeias, Tamboli e Banzia, “onde os portugueses possuem igreja e exercem o seu comércio”, sobretudo o trato da cera.

A nossa chegada ao Golfo de Bengala aconteceria naturalmente, pois já em 1498 haviam as naus da Cruz de Cristo ancorado ao largo da costa de Madras, onde décadas depois seria construído o porto de São Tomé de Meliapor. Da primeira vez, a coisa não correu lá muito bem pois, alarmados, os comerciantes nativos opuseram-se à chegada dos concorrentes forasteiros e obrigaram-nos a partir para Orissa onde, em 1514, fundariam a cidade de Pipli, a quatro milhas da foz do rio Subarnarekha. Aquele que seria a primeiro entreposto no Golfo de Bengala, cedo se tornaria em florescente posto de comércio lusitano e a ele demandavam piratas (arracaneses e portugueses) a vender os seus prisioneiros. Joannes De Laet, geógrafo e director da Companhia Holandesa das Índias Orientais, assevera, em 1613, ser essa “uma possessão dos portugueses”. Por essa altura construíam os agostinhos uma igreja dedicada – para não variar – a Nossa Senhora do Rosário. Prolongar-se-ia no tempo a relevância de Pipli. William Bruton, contramestre duma das primeiras carracas inglesas que sulcaram as águas da região, descreve Pipli, em 1638, como uma “cidade portuária de Portugal onde residem muitos dos seus nacionais” e, quase um século depois, em 1723, o padre Barbier, na descrição que faz da visita episcopal do bispo Laines, refere a presença de uma “larga congregação de portugueses ou topazes”. A entrada em cena da EIC, Companhia Inglesa das Índias Orientais, rival da congénere holandesa VOC, suscitaria a hostilidade dos portugueses ali estabelecidos. O historiador William Wilson Hunter menciona a acção de uma fragata lusa assistida por “uma ralé de patifes da cidade de Pipli” que, no porto de Harishar, quase afundou “um junco inglês vindo de Bengala”. Já o navio Swan, capturado aos ingleses pelos arracaneses, receberia diferente tratamento. De acordo com o diário de Hedges, seria resgatado por quatrocentas rupias por “um capitão português acabado de chegar a Pipli vindo de Macassar”.

Havia em Balasore um entreposto do qual não resta qualquer vestígio, não obstante, nas suas impressões, Andrew Stirling, autor da primeira história de Orissa, presenciou “uma capela católica com uma cruz de madeira à porta da entrada”.

Joaquim Magalhães de Castro

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