Mata-Birus da Indonésia

Os bigodaças de Kuala Daya

Sentado na única tasca de Kuala Daya, junto à mesquita de madeira, no centro da minúscula povoação, não pude deixar de relembrar as recomendações do jovem capitão.

«– Daya é um foco de guerrilha. Eles são GAM. E não apenas apoiantes, fazem parte da organização».

Por apenas três mil rupias (o preço de uma garrafa de água mineral de litro e meio), almocei um delicioso prato de peixe, camarão e legumes banhados em molho de coco, tudo isso acompanhado de arroz.

O repasto decorreu sob o olhar atento de um tipo de forte bigodaça. O bigode era, aliás, marca de referência dos “portugueses” da região de Lamno. E, se a maioria transpirava simpatia, havia-os também com cara de poucos amigos. Era o caso desse observador sério e inquisitivo. A seu lado, um homem mais velho, de tronco nu, demonstrara orgulho da sua ascendência pedindo-me que o fotografasse. Entusiasmados pelo gesto, outros quiseram também tirar o retrato. Mulheres com crianças ao colo aproximaram-se, movidas pela curiosidade, mas logo fugiram quando lhes apontei a câmara. Acabaram por ceder, algumas, a pedido dos homens, que pacatamente deixavam correr as horas à sombra da enorme mangueira que com a sua copa cobria todo o boteco.

O encontro decorreu entre sorrisos e linguagem gestual, pois ninguém sabia outro idioma que não achenense e bahasa.

«– Os GAM gostaram de ti. Por isso, não tiveste problemas», concluiria, mais tarde, As Rasman. «– Em Kuala Daya todos são pescadores, mas a verdade é que têm muitas armas escondidas».

O contrabando desse material de guerra, proveniente da Tailândia, era feito de barco a partir da costa malaia. Como moeda de troca, recorria-se a fardos de marijuana, produzida em grande quantidade na província do Achém, como era sabido.

«– Trata-se de uma troca. Os pescadores fornecem ganja e recebem metralhadoras AK-47 de fabrico belga».

E o exército, por que razão não estava ali?

«– Para lá irá», dizia Rasman, assegurando não temer os GAM apesar da sua posição integracionista. «– Eles têm-me respeito, assim como o exército».

Fui encontrar Teku Achim na praia a remendar redes na companhia de outros pescadores. Visto que eu não falava bahasa, mostrou-se desinteressado, embora tivesse perguntado se era jornalista.

Uma vez mais vi-me rodeado de pessoas com a pele mais clara do que a minha e de olhos castanhos e esverdeados. Ali se materializou também o sujeito de bigode e ar desconfiado. Dir-se-ia que me controlava os movimentos. Um forasteiro que filmava e fotografava indiscriminadamente só poderia ser motivo de suspeita. A ele, imaginava-o agarrado a uma arma automática, na mata cerrada. Aos outros, nem a uma fisga, apesar das fartas bigodaças. Quanto aos miúdos que tomavam banho em pelota, esses, sim, pior que terroristas. Mal-educados, obscenos, fizeram-me estragar umas quantas fotos e furaram-me os tímpanos com estridentes e despropositados berros.

Frustrado por não conseguir o meu objectivo, e incapaz de comunicar, a não ser por gestos e com uma ou outra palavra de bahasa que conhecia, aproveitei para subir a um morro ali próximo, tentando obter uma melhor perspectiva do terreno. A paisagem era fabulosa.

Não admira que os portugueses tivessem ficado por estas bandas… Se calhar nem sequer houve naufrágio, dei por mim a pensar.

Acompanhou-me nesse passeio um bizarro personagem de crânio rapado, que me mostrou o túmulo ali existente de Po Teumeurehom Daya, soberano do reino Daya no século XVII, vassalo do poderoso sultanato de Achém.

Quando me preparava para fotografar as embarcações pousadas no areal, saiu-me com um chorrilho de frases aparentemente desconexas e em perfeito Inglês, que me deixaram surpreendido.

Dizia ele:

«– Agora não, meu amigo, porque estou cansado, acabei de subir a um coqueiro».

Também me disse que estávamos no «lugar errado» e que o melhor era «deixarmos para uma próxima vez». Interpretei tudo aquilo como um convite simpático para abandonar a aldeia. A criançada, porém, fazia-me entender que o tipo não regulava muito bem da cabeça. Por isso, acabei por fotografar, mas não fiquei convencido. Naquelas frases havia algo de inquietante.

Ficaram por ver as caves de Geurentee, nas proximidades, onde subsiste o mistério de um “homem-macaco”, uma espécie de yeti cujas peugadas foram encontradas na região.

De novo no centro da aldeia, depois de beber um café com borras e antes do regresso a Lamno, fui abordado por mais um indivíduo de bigode, recém-chegado, que inteirando-se da minha nacionalidade, perguntou:

«– E Timor? Portugal apoia a independência de Timor, não é? E de Aceh, apoia?»

Esta pergunta só viria reforçar a suspeita da alegada ligação dos habitantes de Kuala Daya aos GAM.

Também em Lamse, alguns quilómetros a sul de Lamno, à entrada da barra, ali mesmo, entre o mar e o rio, habitavam luso-descendentes. As Rasman fizera questão de lá me levar pessoalmente, pois os seus habitantes eram apoiantes do “partido do touro”, o PDI de Megawati Sukarnoputri, com o qual também ele se identificava.

Encontrei ali mais homens de bigode, crianças reguilas, barcos coloridos e um monte de atuns acabados de pescar, «mas apenas para exportação».

Recordo-me de ver, na televisão, esse mesmo local por detrás de um repórter da BBC, poucos dias após o tsunami, totalmente devastado. A ponte que permitia a circulação para Sul simplesmente desaparecera.

Joaquim Magalhães de Castro

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