«A participação da China na Grande Guerra foi uma oportunidade única para a sua internacionalização»
Projecto que pretende «trazer a público um dos episódios simultaneamente mais marcantes e esquecidos da China pós-imperial», o livro “China na Grande Guerra”, com a chancela do Instituto Internacional de Macau (IIM), foi lançado recentemente em Lisboa, no auditório do Centro Científico e Cultural de Macau, estando prevista uma apresentação na RAEM em data a anunciar. O Clarim falou com o seu autor, Luís Cunha, jornalista e investigador que durante largos anos residiu no território.
O CLARIM – Porquê este livro, em 2015? Qual a relevância?
Luís Cunha – Em 2014 assinalou-se o centenário do início da Primeira Guerra Mundial e, já no corrente ano, assinalam-se os 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Estas efemérides recordam-nos que a primeira metade do séc. XX assistiu a um fenómeno sem precedentes, isto é, a industrialização e globalização da guerra, com as consequências que se conhecem. A China viu-se envolvida, em diferentes escalas, nos dois conflitos mundiais. Todavia, a historiografia oficial não faz justiça, a meu ver, a esses esforços e sacrifícios. Com este livro, quis levar até ao grande público a narrativa de um episódio relativamente desconhecido, que foi o da participação chinesa na Grande Guerra, e o impacto que essa acção em prol dos Aliados teve, não somente na construção identitária da China moderna, mas também nas relações internacionais.
CL – Quanto tempo foi preciso para o preparar? Quais as fontes consultadas?
L.C. – Este livro resulta de três anos investigação, com recurso a fontes primárias e secundárias. Tive oportunidade de consultar documentos muito interessantes e, nalguns casos, nunca publicados, em arquivos históricos de Lisboa, Londres e Macau. Recorri ao Imperial War Museum de Londres e ao Museu In Flanders Fields, na Bélgica. O Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, revelou-se uma fonte particularmente fecunda. Também li as auto-biografias e outras memórias escritas pelas principais personalidades envolvidas neste episódio histórico e muita documentação oficial. Há uma reduzida mas importante bibliografia sobre esta matéria, em Inglês e Francês, mas procurei dar um enfoque português a esta problemática, recorrendo, por exemplo, a fontes diplomáticas da época. Tentei fazer um retrato alargado dos dramas – políticos, sociais, económicos, militares – associados ao conflito. Mais do que histórica, a minha perspectiva é geopolítica.
CL – Para os leigos na matéria, em que medida e porquê participou a China na Primeira Grande Guerra? Qual a área geográfica em que se moveu e com quem se aliou?
L.C. – É preciso contextualizar. A China – à semelhança de Portugal – era uma jovem república em busca de afirmação internacional. Com o fim da dinastia imperial, vivia em clima de guerra civil, com dois Governos em funções – um a Norte e outro a Sul. Era um Estado em construção, frágil e politicamente debilitado, que tentava libertar-se da política de canhoneira de que fora vítima durante muitas décadas. Várias nações ocidentais, a par do Japão, tinham interesses comerciais e estratégicos na China, transformando-a numa nação semi-colonizada. Os chineses sabiam que se alinhassem com a facção vencedora do conflito poderiam reclamar representação nas conversações de Paz, aproveitando então para apresentar um extenso caderno reivindicativo, que poderia colocar cobro à exploração da China. Seria uma espécie de carta de alforria. Mas a entrada na guerra não foi consensual. O fundador da República da China. Sun Yat Sen, manifestou-se energicamente contra a medida, chegando até a elogiar abertamente os japoneses e alemães num manifesto que fez publicar.
CL – O que é que levou os chineses a entrar na guerra?
L.C. – Uma das principais razões foi a ocupação da província de Shandong, logo nos primeiros meses do conflito, pelas forças do exército imperial nipónico. O Japão não perdeu tempo e, valendo-se da aliança que formara com a Grã-Bretanha, em 1902, conseguiu expulsar os alemães da única concessão que estes detinham na China. Tratou-se de um rude golpe para a China, país que – à semelhança de Portugal – se havia declarado neutral. Shandong fora o berço do filósofo Confúcio, o que ofendeu ainda mais a sensibilidade dos chineses. A acção dos chineses esteve sempre condicionada pelos interesses geo-estratégicos do Japão, que temia a emancipação de uma China alinhada com os Aliados. O Japão foi de resto, durante todo o conflito, um aliado incómodo da Entente. Por outro lado, a China estava dividida e fragilizada, necessitando da construção de uma identidade – nacional e internacional. A participação na Grande Guerra afigurava-se uma oportunidade única para a internacionalização da China, isto é, para a sua entrada no restrito clube dos Estados que ditavam as regras do sistema internacional. O fim do estatuto da extra-territorialidade de que as potências ocidentais e Japão desfrutavam e a eliminação do pagamento das indemnizações decorrentes da rebelião dos Boxer, em 1900, eram outras das motivações chinesas. Infelizmente, para os interesses chineses, o resultado das conversações pós-guerra em Versalhes foi uma humilhação redobrada. A China acabaria por ser a única nação representada no conclave a não subscrever o Tratado de Paz.
CL – Há conhecimento de chineses de Macau ou Hong Kong que, de alguma forma, tenham participado nesse conflito?
L.C. – Os “trabalhadores-soldados” enviados para a Europa foram recrutados maioritariamente em Shandong. Um número residual também foi recrutado em Hong Kong. A preferência dos recrutadores ia para os chineses do Norte, considerados mais robustos e resistentes aos rigores do Inverno europeu. Lara Reis, conhecida personalidade de Macau, terá participado na Grande Guerra como aviador.
CL – Qual era a dimensão do contingente chinês? Quantas baixas?
L.C. – Quando a China entra oficialmente no conflito, já havia milhares de civis chineses a prestarem apoio aos exércitos britânico e francês na Europa. Na versão britânica foram agrupados numa força gerida por militares – o Chinese Labour Corps. Seriam enviados para a Flandres 140 mil trabalhadores chineses, através de longas travessias marítimas. O número exacto de baixas nunca foi conhecido, sendo que dois mil chineses estão sepultados em vários cemitérios da França e Bélgica. Estavam impedidos, por contrato, de serem empregues junto às linhas da frente, mas esse compromisso foi quebrado sistematicamente, pelo que muitos morreriam em consequência dos combates. No final do conflito ficaram responsáveis pela perigosa limpeza dos campos de batalha, o que deu origem a um elevado número de baixas. Esse esforço de guerra nunca foi devidamente reconhecido.
CL – Poucos sabem que a China foi o país, a seguir à União Soviética (65%), que perdeu mais militares durante a Segunda Grande Guerra (23%). Foi similar o panorama no primeiro conflito mundial?
L.C. – A China não teve uma participação armada na Grande Guerra, o que reduziu, enormemente, a exposição aos horrores do conflito. Forças expedicionárias de outras latitudes tiveram, comparativamente, maior número de baixas. Nessa medida, o esforço chinês na Segunda Guerra Mundial foi muito maior e incomparavelmente mais penoso.
CL – Na sequência da questão anterior, não considera que seria importante falar também da participação chinesa na Segunda Guerra Mundial, quiçá mais relevante do que na Primeira? Está pronto para o desafio?
L.C. – Num ponto todos os historiadores estão de acordo: a Segunda Guerra Mundial foi consequência da Primeira Guerra Mundial. No caso da China, vamos encontrar as ambições hegemónicas japonesas no centro das tensões geopolíticas bilaterais. O Japão aproveitou a Grande Guerra para colocar em campo um ambicioso plano, que tinha como objectivo transformar a China num Estado vassalo. Nunca desistiu desse objectivo e quando eclode a Segunda Guerra Mundial já os chineses combatiam o exército do Império do Sol Nascente em solo pátrio há quatro anos. É interessante notar que os EUA tinham recolhido ao isolacionismo na sequência do impacto negativo no público americano da questão de Shandong, provocado pelos japoneses, e só sairiam desse casulo com o ataque japonês à base naval americana em Pearl Harbor. Até há pouco tempo, o relato histórico da participação da China na Segunda Guerra Mundial estava incompleto. Contudo, o excelente livro de Rana Mitter (War with Japan, 1937-1945) veio revelar-nos que esse esforço foi homérico e vital para o desenrolar dos acontecimentos. Contra todas as expectativas, uma China embrenhada numa guerra civil fratricida e mal armada, conseguiu suster, durante quatro anos, o maior e mais bem organizado exército asiático.
CL – Nas recentes comemorações da libertação de Auschwitz, a Rússia, país que venceu militarmente o III Reich (os soviéticos abriram os portões do campo de concentração), não foi convidada. O mesmo se passou com a China. Não considera que há cegueira, manipulação e má-fé por partes das potências ocidentais que reclamam para si o título de libertadores e restauradores da democracia?
L.C. – Embora o mundo tenha mudado radicalmente desde o final da Segunda Guerra Mundial, é o condomínio das potências ocidentais que ainda controla o sistema internacional. A lista dos membros permanentes do Conselho Segurança Permanente das Nações Unidas é o espelho desse desajustamento com a realidade. Como se sabe, a historiografia oficial nem sempre corresponde à verdade dos factos. O “branqueamento” da História tem adeptos em todos os pólos ideológicos.
CL – Pretende este livro ser contracorrente a essa tendência de visão unilateral?
L.C. – O meu objectivo é mais modesto. Tão só e apenas dar a conhecer o esforço de guerra chinês, num contexto de grande agitação geopolítica, e fazer juz aos milhares de homens que foram, apesar das circunstâncias, os primeiros embaixadores chineses à Europa. A história da participação chinesa na Primeira Guerra Mundial deve ser encarada à luz da dinâmica sempre instável das relações internacionais, isto é, da acção e consequências da entrada em jogo no sistema internacional de uma China à procura do seu próprio espaço e de uma respeitabilidade que o Ocidente e Japão teimavam em negar.
Joaquim Magalhães de Castro
em Lisboa