Embaixadores, intérpretes e missionários
Nomeado para o cargo pelo capitão Fernão de Albuquerque, Afonso Vicente, “casado e leal à coroa”, seria o primeiro embaixador luso a estabelecer residência na corte do Achém. Ali viveu até 1602, como nos dá conta o piloto John Davies. Informa ainda este inglês, em 1599, que Vicente ostentava “o título de Dom” e tinha como principal tarefa evitar que os holandeses se estabelecessem naquelas apetecíveis paragens. Aliás, o português seria acusado pelos homens da VOC de ter sido o incitador da surtida aos navios da armada de Cornelis van Houtman, na sequência da qual viria a sucumbir esse almirante. Anos antes, em Lisboa, sob a capa de mercador, o hoje intitulado “descobridor do caminho holandês para as Índias”, reunira todas as informações necessárias para seguir as nossas peugadas a Oriente e aí obter o tão desejado provento. Como se vê, de “descobridor” Houtman nada teve.
Apesar de tempos a tempos serem cordiais as relações entre portugueses e achéns, por força dos interesses, muito longe estávamos de uma relação de amizade. A frase do Hikajat Atjeh define bem o relacionamento dos nossos mercadores com o soberano de Achém: “E o chão brilha reflexos vermelhos, verdes e amarelos, como se fossem estrelas no firmamento. E todos os pequenos calhaus da praça resplandecem por causa do brilho dos diamantes que usa Perkasa Alam [o verdadeiro nome de Iskandar Muda]. E todos os Franguesinhos [portugueses] correm a apanhar os calhaus, julgando tratar-se de joias. Mas quando Perkasa Alam se afasta um pouco, os calhaus deixam de cintilar e os Franguesinhos abrem as mãos para os deitar fora. E toda a gente deitou a rir estrondosamente como se fora um trovão no céu”.
Entre os luso-asiáticos que ganhavam a vida como intérpretes no mundo malaio constam os nomes de Domingos Vale, nascido em Cochim, e de um tal Pedro Ferreiro, natural de Goa. A este último pediu o sultão Iskandar Muda que traduzisse para Português uma carta destinada a Luís XII que a 27 de Julho de 1621 seria confiada ao viajante francês Beaulieu.
Na segunda metade do século seguinte, o inglês Thomas Forrest, reincidente naqueles domínios, diz que “o sultão Oola Odine” [sultão Alauddin Muhammad Syah (1781-1795)] falava Francês e Português. Ao que consta, aprendera essas línguas aquando da sua estada nas ilhas Maurícias, em rota para Meca onde fora, como bom muçulmano, cumprir a obrigatória peregrinação.
Embora Portugal nunca tenha tido qualquer feitoria no Achém, a língua de Camões sempre esteve presente nos documentos locais. E isto pelo século XIX adentro, como o demonstra uma declaração do governante da região de Susu, na costa oeste de Samatra. Na verdade, a língua portuguesa estava, já nessa altura, perfeitamente instalada na corte do Achém. Entre os vários exemplos disponíveis há “uma carta redigida a propósito da venda de um escravo” e uma carta “do sultão do Achém, sultão Johor al-Alam Syah”, ao governador-geral de Bengala e demais Estados britânicos da Índia.
Não era só a língua que marcava presença. De 1808 a 1816 residiu no Achém o comerciante Carlos Manuel Silveira, desempenhando a prestigiante função de “conselheiro do sultão”.
Nesse universo diplomático tiveram também predominante papel os homens religiosos. O período de tréguas e bom relacionamento comercial do Achém com Malaca, registado entre 1589 e 1604, deve-se aos esforços de frei Amaro de Jesus, mas também de Tomás Pinto e Afonso Vicente, abonados comerciantes de Malaca. A razão desse desanuviamento conta-se em duas penadas: em 1592, naufraga junto costa de Samatra um navio português. A bordo segue o bispo de Macau, que o sultão Alauddin Riayat Syah al-Mukammil recolhe juntamente com os restantes passageiros. Entre estes, temos o agostinho Amaro de Jesus, nascido em Malaca. Posto que este falava Malaio, o sultão trata de o enviar a essa cidade “com oferecimentos de paz e mostras de boa vontade”. Seguir-se-iam trocas de várias embaixadas, tendo Amaro de Jesus servido de embaixador do sultão por duas ocasiões, em 1600 e 1603. Era de tal excelência a sua relação com o sultão que este lhe atribuiu o título de Bintara Orang Kaya Maharaja Lela Putih. Ou seja, e por partes, bintara (arauto ou mensageiro), orang kaya (título honorífico), maharaja lela (próximo do sultão) e putih (homem branco). Este foi, sem dúvida, um relacionamento sem paralelo nos anais da diplomacia portuguesa na região.
Mais a sul, em Bali, parecia haver receptividade quanto a uma eventual presença de missionários na ilha, facto que teria sido transmitido a alguns mercadores que lá aportaram em 1630. Face a essa perspectiva, o reitor do colégio jesuíta de Malaca informou o vice-provincial em Cochim e, “com custos suportados pelo capitão da fortaleza D. Álvaro de Castro armaram-se dois navios com destino a ilha”. Porém, quando aí chegaram, em fins de Abril de 1635, distinto era o ambiente. Mostrava-se agora avesso aos missionários o rei, e apenas lhe interessava o comércio com Malaca. Na verdade, o seu interesse inicial devia-se à necessidade que tinha da ajuda militar dos portugueses, pois era pressionado pelos rivais javaneses que a todo o custo tentavam islamizar o último, ainda hoje, reduto hindu no arquipélago malaio. Além disso, a intriga holandesa também ajudou.
Protagonista deste episódio, o jesuíta Manuel de Azevedo, a propósito, escreveu a “Relação Brevíssima da Viagem ao Reino de Bale no ano de 1635”. Já antes, em 1618, ao desembarcar em Bima (actual Sumbawa) com o intuito de converter o rei local, o jesuíta deparara “com embaixadores de Macassar e do Sunan de Giri, Panembahan Agung, autoridade religiosa de Java oriental”, e ainda um embaixador do capitão e do bispo de Malaca e de Francisco Fernandes, capitão-mor dos portugueses de Solor e Larantuca. Para não desvirtuar, Azevedo apresentou-se como um outro embaixador das personagens citadas mas sobretudo “do rei dos Céus, que lhe mandava oferecer a sua divina lei, e com ela para sua amizade, a salvação para a alma”.
Joaquim Magalhães de Castro