Um momento histórico.
Numa altura em que o povo de Myanmar vira uma importante página da sua história conduzindo ao poder Aung San Suu Kyi, Prémio Nobel da Paz e incansável lutadora pela democracia naquele país, evoquemos aqui a oposição à ditadura militar manifestada desde sempre pela Igreja Católica local, aqui representada pelo já falecido bispo de Mandalay, D. Alphonse U Than Aung, descendente de portugueses.
Quando o conheci, no âmbito das minhas investigações sobre a comunidade bayingyi (luso-descendentes), lembrou-me que os generais tinham as universidades fechadas há mais de um ano. «Será que querem um país só com militares?», perguntava. Sem temer o peso das palavras, comparava a situação política do País a um eterno jogo do rato e do gato. «Abre um pouco aqui, mas logo fecha ali», dizia.
Embora não tivesse autorização para tal, D. Alphonse possuía computador – um luxo na Myanmar de então. A junta militar era dona absoluta de todas as plataformas de comunicação, embora qualquer birmanês com dinheiro pudesse adquirir uma parabólica, com a qual acedia a diferentes canais internacionais. Sempre que o prelado precisava de telefonar para o estrangeiro a ligação fazia-se a partir de Yangon, obrigando-o a testar o crivo da censura, algo que o irritava solenemente.
Na verdade, os bayingyis constavam da lista dos suspeitos do regime. À Igreja Católica tinham sido confiscadas as escolas e os orfanatos sob a sua alçada, limitando, assim, de um só golpe, a sua acção educativa e social. Além disso, estava proibida de construir novas igrejas. O regime alegava que os missionários cobravam muito dinheiro para ensinar. Mas a verdade é que «agora se cobra muito mais, com a desvantagem de o nível do ensino ter descido para valores nunca vistos», como notava D. Alphonse.
Ao mesmo tempo que refreavam os movimentos aos cultos estrangeiros – Cristianismo, Hinduísmo e Islão – os generais mostravam-se ao País como fervorosos budistas. Víamo-los, nos serviços noticiosos do canal único, ajoelhados junto aos monges mais ilustres, oferecendo donativos pecuniários ou inaugurando pagodes. D. Alphonse classificava-os de hipócritas: «é óbvio que não sentem o que estão a fazer».
Para saber das coisas do mundo, o antigo arcebispo de Mandalay recorria a exemplares da Time, da Newsweek, da Asiaweek, pousados numa mesinha em frente a um sofá puído pelo tempo, e, sobretudo, do L’Osservatore Romano, cujos artigos uma freira, sua assistente, dactilografava e enviava posteriormente aos responsáveis das diferentes paróquias. «Repare neste desenho», dizia ele a respeito de um cartoon na última página do New Light of Myanmar, o jornal do regime, «representa Aung San Suu Kyi. Estão sempre a meter-se com ela. Todos os dias. Creio que estão a arranjar lenha para se queimarem».
- Alphonse não escondia a sua simpatia para com a líder da oposição, na altura ainda, e por muitos mais anos, em prisão domiciliária. «Aprecio-a muito, mesmo muito», afirmava. Admirava-lhe a paciência, «sabe esperar pelo momento oportuno» e, mais importante, «nunca aliciou o povo à violência». Se assim fosse, «já teriam ocorrido muitos banhos de sangue neste país».
Ser católico em Myanmar era, de certa forma, sinónimo de dissidência. Mas, apesar do estigma, não houve propriamente perseguições aos clérigos. O mesmo não se pode dizer de alguns destacados membros de sociedade civil, como foi o caso de Par Par Lay, o mais reputado comediante de Myanmar, à época uma espécie de herói nacional. E um herói que nunca escondera a sua simpatia para com a líder da oposição – «amigo e apoiante da mulher a que chamam The Lady», como referia o jornal tailandês The Nation – e que tivera a coragem de denunciar os generais como «um bando de ladrões».
A ousadia custara-lhe a liberdade e pusera-lhe fim à carreira. Eis os factos: em Janeiro de 1996, ao chegar a casa, após uma representação na residência de Aung San Suu Kyi, por ocasião do quarto aniversário do dia da independência, Par Par Lay (então com 50 anos), o seu camarada Lau Zaw, dois dançarinos, quatro músicos e alguns membros da oposição tinham a polícia à sua espera. Estes últimos seriam libertados poucos dias depois, mas a Lay e a Zaw ser-lhes-ia aplicada uma sentença de sete anos de cadeia.
Acusaram-nos de «actividade política contra o Governo», já que o contacto com Aung San Suu Kyi estava interdito. Após uma série de interrogatórios, que demoraram duas semanas, foram enviados para um campo de concentração no extremo norte do País, a trinta quilómetros de Mytikyna, no Estado do Kachin, região interdita a visitantes estrangeiros, nas faldas dos Himalaias. Durante algum tempo, nada mais se ouviria acerca dos comediantes. As primeiras notícias, reveladoras do seu destino, chegariam à Tailândia via prisioneiros fugitivos, sendo que a cobertura mediática subsequente “obrigaria” o Governo birmanês a transferi-los do campo para um presídio normal, medida que provavelmente lhes terá salvado a vida.
Em Mytikyna o trabalho era de sol-nado a sol-pôr, partindo pedra para o novo aeroporto em construção. Tão facilmente se morria de acidente, devido às pedras dinamitadas, como se “morria pela boca”, literalmente, pois, ao que constava, os guardas adicionavam chumbo aos alimentos para diminuir as capacidades físicas dos prisioneiros, que viviam às centenas em barracas e sem acesso a tratamento médico.
Entre as torturas a que estavam sujeitos, constava a obrigatoriedade de caminharem sobre pedras rugosas e pontiagudas; caso contrário, era certo o espancamento nas plantas dos pés com uma cana de bambu. Obrigavam-nos também a obedecer a indicações do tipo “virar à direita”, “virar à esquerda”, “seguir em frente” ou “acelerar”. Caso não respondessem a tempo, eram de novo espancados.
Ocasionalmente, autorizavam a visita da mulher, mas de nenhum outro familiar. A cara-metade de Par Par Lay visitou-o numa ocasião, quando este estava ainda no campo de concentração, e duas outras vezes na prisão, a última das quais em Setembro de 1996. Depois dessa data pôde levar-lhe comida, mas não vê-lo. Informava a senhora que Par Par Lay, «era o desânimo em pessoa», tinha até cortado o bigode e o cabelo, marcas de referência. «Isso foi há um ano» – informava o birmanês que me contou esta história – «agora, quem sabe se não terá já morrido».
Joaquim Magalhães de Castro