Santi, Gautama e os guardiões Phii
Continuamos esta semana em Luang Prabang, a jóia da coroa do Laos, numa época em que o turismo de massas dava ainda os primeiros passos. Thanon Phothisalat, a rua principal dessa cidade, preparava-se para se transformar numa outra Kao San Road (rua do turista pé descalço, em Banguecoque) a médio prazo. Os restaurantes e as lojas de artesanato já lá estavam. Só faltava mesmo mais clientela, as rançosas cassetes do Bob Marley, as agências de viagem, as casas de câmbio, as massagens e um vídeo diferente todas as noites.E como Luang Prabang era assim a modos que pequeno, os turistas corriam o risco de esbarrarem uns contra os outros. Isso já acontecia, sobretudo à hora da sesta quando os laocianos ficavam a “descansar” da sua movimentada manhã, regra geral, passada em frente a um televisor a assistir ao desenrolar dos acontecimentos nas pesarosas e cor-de-rosa telenovelas tailandesas.
Tomava lugar num restaurante de bambu sobranceiro ao Mekong na perspectiva de uma noite tranquila, e aparecia logo um contingente de holandeses que tinha já as mesas de toalha vermelha reservadas de antemão. Percorria as artérias paralelas da cidade em busca de anonimato, e cruzava-me com mais estrangeiros (na sua maioria holandeses) num só dia do que numa semana no terminal do aeroporto de Macau. Estava tranquilo a escrever na companhia dos compinchas do Computer Center e os turistas que passavam na rua (de certeza absoluta que tinham feito recentemente promoção do Laos na Holanda) não se calavam com o “do you have e-mail?”. Uma senhora (holandesa, com certeza) fazia um levantamento do número de computadores existentes na província de Luang Prabang e chegara a conclusão que existiam à volta de oitenta. Procurava uma cabina para fazer um telefonema internacional – “cortesia” da Detacom germânica que pusera o Laos em contacto com o mundo nos anos recentes – e estava lá dentro um tipo enorme que mal cabia na barraca (aposto que era holandês).
Através da vidraça do Computer Center vejo um autocarro com um grupo de turistas (deviam ser holandeses) acabadinhos de chegar da cascata de Kuang Si. Toalha ao ombro, entravam já para o New Luang Prabang Hotel, um edifício muito pouco património mundial a destoar com o simpático casario colonial francês que a UNESCO parecia ter decidido tomar sob a sua alçada. Ao menos isso. Porque de tranquilidade e ver arrozais crescer estávamos conversados. A genuinidade de Luang Prabang tinha os dias contados. Que saudades do tempo em que os fokkers e os antonovs a hélice não sobrevoavam os telhados da ainda pacata capital de Lan Xang, o primeiro reino Lao de que há memória.
DESTINO NO FEMININO
«Gostava de me inscrever num curso de Inglês para aprofundar os meus conhecimentos, mas o custo mensal é demasiado elevado para as minhas possibilidades», confessava a jovem Santi. O custo de um curso de Inglês no Laos era de 50 dólares mensais e o salário de Santi (funcionária do Computer Center de Luang Prabang) ultrapassava apenas em dez dólares esse montante. «Faço o máximo que posso e tento guardar dinheiro para que o meu pai deixe de trabalhar e pense em descansar». Poder-se-ia concluir, por esse falar, que o pai de Santi era um ancião, uma pessoa doente. Não era o caso. Como o pude confirmar, ao aceitar o convite para visitar a sua família e comer uma refeição tradicional laosiana. Estávamos sentados à mesa quando o pai chegou, de bicicleta. Um homem de cinquenta e tal anos que aparentava menos quinze e parecia respirar saúde por todos os poros. Saúde perpetuada, muito provavelmente, pelo copinho de álcool de arroz adocicado que bebia religiosamente logo que chegava a casa. Nada, pelo menos exteriormente, indicava que o homem estivesse a necessitar de reforma (num país cuja esperança média de vida é 51 anos, nunca se sabe…), mas Santi expressara apenas a preocupação de tantas outras raparigas laosianas que tiveram o azar de serem o rebento inicial da família. Todas elas, sem excepção, se sentiam na obrigação de sustentar a família. Se não era o pai era a mãe e se não era a mãe era o irmão ou a irmã mais nova. Esse o destino da filha mais velha das famílias laocianas: assegurar o bem-estar de todos os outros, muito antes do seu próprio bem-estar. Até que chegasse marido que a levasse. E de preferência que fosse estrangeiro, pois contribuiria para minimizar as dificuldades económicas.
«O meu sonho é poder vir a ganhar muito dinheiro para que o meu irmão possa vir a estudar. Pois se não aprender Inglês as hipóteses de encontrar trabalho serão muito reduzidas», continuava Santi. Repare-se que ela mencionava apenas o “futuro do irmão”, apesar de ter abaixo dela outras três irmãs. Para não fugir à regra asiática, também no Laos ter uma filha era um verdadeiro castigo dos deuses. Num relvado ao lado, o irmão de Santi fazia habilidades com uma bola de verga – tekrow (volei de pé), desporto bastante popularizado nos países do Sudeste Asiático. Vir a ser profissional de futebol era o grande sonho do rapaz. E perfil já o tinha. Habilidade também. Quem sabe se não estaríamos perante um futuro craque da selecção laociana? Assim sendo, de pouco lhe serviria um curso de Inglês. Às suas irmãs, contudo, ser-lhes-ia extremamente válido e contribuiria para que não dependessem de um marido que as levasse.
BUDISMO E CULTO DOS ESPÍRITOS
Apesar do regime manter estreitas ligações com o Vietname desde o início, o Laos soube sempre manter uma identidade própria. A religião budista encontra-se profundamente enraizada no povo e o regime tem feito o possível e o impossível para tentar provar aos seus cidadãos que o comunismo e o budismo não são incompatíveis.
Apesar de muitos negócios particulares terem encerrado depois de 1975 – e muitos comerciantes terem atravessado o Mekong rumo à Tailândia – assiste-se, desde 1979, a claras mudanças no regime e a um incremento gradual da economia. A monarquia do Laos está intimamente associada ao aparecimento do budismo. Antes disso predominava o culto animista, ainda hoje fortemente enraizado entre a população tribal. A maioria dos habitantes da planície do Laos pratica o budismo Theravada. Muitos dos homens, em regime de voluntariado, fazem votos monásticos durante várias semanas ou até vários meses e passam a residir durante esse tempo em mosteiros. Os monges estão proibidos de promover o culto de espíritos, o phii, que se encontra oficialmente banido juntamente com a magia popular. Apesar da interdição, o phii permanece o principal credo não-budista no País. Mesmo em Vientiane realizam-se abertamente cerimónias denominadas sukhwan ou basi, nas quais 32 espíritos guardiões (khwan), representados por cordas brancas, são enrolados em torno dos pulsos de um hóspede muito especial. Cada um dos khwan é suposto representar cada um dos guardiões que protegem os diferentes órgãos do corpo humano.
Muito além do vale de Mekong o culto phii é particularmente querido entre as tribos thais, sobretudo os thai dam (thai negros). Feiticeiros (maw), especialmente treinados no apelo e exorcismo de espíritos, presidem a importantes festivais e outras cerimónias dos thai dam. A respeito de um tabu típico das sociedades budistas, salientava Fernão Mendes Pinto que “esta nação é muito mais opiniática e desconfiada, e tem por cume de todas as desonras e injúrias que se lhe podem fazer tocarem-lhe na cabeça, por onde aquele moço, tanto que el-rei lhe tocou com os dedos da maneira que disse, havendo que era aquilo um notável desprezo”.
As obras de arte são, habitualmente, de natureza religiosa. Entre elas, há que mencionar as imagens de Buda e os wats (templos/mosteiros). Distintivamente laociano é o Buda-que-reza-pela-chuva, uma imagem fusiforme da divindade. Os wats em Luang Prabang possuem capelas únicas, com telhados íngremes e baixos representativos do estilo lanna do norte da Tailândia. A típico lao thât (stupa) tem quatro lados, curvilíneos, e uma estrutura esférica. O melhor exemplo a nível nacional é o that luang, em Vientiane, símbolo absoluto da monarquia. Outras stupas apresentam influências tailandesas ou singalesas. O trabalho em ouro e prata está presente no artesanato dos povos hmong e mien que habitam as terras altas. A tecelagem é produzida pelos thais.
Joaquim Magalhães de Castro