Laos – As Montanhas do Calaminhã – 3

Gauleses, Beer Lao e a missão de João Caeiro

O Laos que se abriu ao mundo nos últimos anos da década de 1990 ainda não explorara as imensas riquezas minerais que possuía e as suas maiores exportações situavam-se na área da energia hidroeléctrica e dos produtos florestais, chegando grande parte dos bens importados via Mekong, que faz fronteira com a Tailândia, ou por uma estrada de montanha que liga o Laos à cidade de Danang, no Vietname. Oitenta por cento da população trabalhava na agricultura e na exploração florestal, sendo a indústria quase inexistente e a ajuda internacional um importante quinhão do orçamento anual. Nas feiras do País transaccionavam-se produtos contrabandeados a partir da Tailândia e do Vietname, e o câmbio de divisas estrangeiras no mercado negro era perfeitamente tolerado. Com uma população de cerca de cinco milhões de pessoas, habitando metade delas as planícies do Mekong, era ainda um dos países mais pobres do planeta com um rendimento anual de cerca de 325 dólares per capita.

Numa altura em que em Macau se levantavam questões que nem sequer deveriam ter sido colocadas – tais como a continuidade da Escola Portuguesa e dos Órgãos de Comunicação em Português no território após a anunciada transição de 1999 – no Laos, e de resto em toda a Indochina, os representantes da francofonia, como era o caso do reitor da Universidade Francófona, davam todo o seu apoio à elaboração de um jornal em língua francesa que estava a ser cuidadosamente cozinhado em Vientiane. Os anúncios em busca de paginadores, redactores e fotógrafos qualificados circulavam já pela cidade. Exigia-se que o candidato fosse natural do Laos, mas com a condição sine qua non de dominar perfeitamente o Francês.

Também no Laos se faziam as necessárias localizações, mas com as devidas ressalvas. E só para que ficasse com um pouco de inveja, um funcionário da embaixada de França deu-se ao trabalho de me oferecer uma pequena brochura que indicava a quantidade de gente a aprender Francês no Laos naquele ano de 1997: quinze mil e 500 alunos ao nível do Ensino Primário, 76 mil do Ensino Preparatório e doze mil do Ensino Secundário. No Ensino Superior o ano de 1997 registara 900 alunos e o Centro de Língua Francesa 600. Ou seja, um total de 105 mil estudantes de Francês em todo o País. Se considerarmos que numa população de 4,9 milhões de habitantes a taxa de alfabetização situava-se nos 57 por cento, esse era, sem dúvida, um número a ter em conta.

 

CRESCENTE PRESENÇA DE ESTRANGEIROS

Sentado no aprazível terraço do café Nam Phou, junto a uma fonte de repuxo iluminada, onde expatriados e turistas vinham beber a sua cerveja (“Beer Lao” era a primeira palavra que se aprendia no Laos) e cada vez mais raparigas locais procuravam clientes endinheirados, proferindo três palavras soltas “your hotel name?”, enquanto os miúdos mendigos pedinchavam de mesa em mesa, ocorreram-me pensamentos negativos do tipo: “Mas, afinal, que faço aqui?” podia deixar-me ficar a bebericar ao som funky dos anos setenta – com o qual o gerente croata do bar abrigava os princípios de noite dos estrangeiros residentes em Vientiane – e a embalar-me com o olhar doce das laosianas, mas em vez disso ocorriam-me questões existenciais. “Que figura de urso faço aqui no meio de todos estes europeus, uns de passo e outros de negócio montado!”

É que, bem vistas as coisas, nós, estrangeiros, expatriados, turistas ou repórteres de pé descalço, não passávamos de figuras um tanto ou quanto patéticas. Ficávamos alojados em pensões que, por mais simples que fossem, sempre eram bem mais confortáveis do que as casotas de bambu construídas em charcos insalubres, mesmo ao lado do hotel quatro estrelas Plaza Hotel, já para não dizer que facilmente estoirávamos numa noite de folia, num Chess Club qualquer ou num restaurante mais carote, aquilo que um laosiano mediano ganhava por mês. Era assim em Vientiane, era assim em Phnom Penh, no Camboja.

Era suposto o pessoal das tão badaladas organizações humanitárias estar ali para ajudar, mas bastava um olhar em redor para que nos questionássemos acerca da razão de ser de tanto expatriado e organismo não-governamental por ali sediado. O que estavam realmente a fazer? Ressalvadas as devidas excepções, as pessoas verdadeiramente altruístas e dedicadas, e não duvido de que as houvesse, dir-se-ia que os expatriados pareciam sobretudo preocupados em preparar terreno para ali levarem uma vida regalada, nos exóticos trópicos, mas usufruindo de chorudos salários na conta bancária do país de origem, acrescidos de umas sempre bem-vindas comissões de serviço.

Isentos de taxas, instalados em confortáveis vivendas para toda a família, conduzindo bons todo-o-terreno, esses expatriados eram assim uma espécie de novos colonos disfarçados de ajudantes de campo. Vendo bem as coisas, era para eles, afinal, que se inauguravam os mini-mercados, as pastelarias, as pizarias, os restaurantes finos com vinhos franceses de marca, os clubes nocturnos, as livrarias, as agências de viagens e as croissantarias. Para eles e para uma minoria minúscula de laosianos que conduzia Mercedes Benz e ia buscar o dinheiro ao negócio do ópio e das pedras preciosas da corrupção sempiterna. Como se podia compreender que na capital de um país predominantemente budista se consumisse tanta carne? E havia já por ali inúmeros estrangeiros a deitar lenha no fogo e a introduzirem modernos sistemas de refrigeração de carne, bife importado directamente da Austrália e cartazes “Sorry we are Closed” na vidraça de estabelecimentos com nomes como “Vientiane Fresh Meats”.

Concordava plenamente com o meu amigo Claude, psicólogo de Toulouse, quando este filosofava: «Tornamo-nos cada vez mais cínicos à medida que envelhecemos. Não sei o que dizer de todos estes expatriados que por aqui andam. Mas o certo é que muitos deles estão a tentar ensinar aquilo que eles próprios não sabem. Ou, por outras palavras, vêm para cá, alguns cheios de boas intenções, tentar cozinhar com os ingredientes de lá. E eu, muito sinceramente, acho isso bastante contraproducente».

 

AS IMPRESSÕES DO AVENTUREIRO

Durante a sua campanha militar na Birmânia, onde os jogos de poder e os revezes eram contínuos, Fernão Mendes Pinto – pioneiro europeu na região – integraria uma embaixada enviada pelo rei birmanês ao denominado Calaminhã, um reino aliado, situado algures ao norte do Sião e a oeste de Tonquim. Embaixada essa liderada por João Caeiro e que tinha por missão buscar auxílio militar, pois Tabin Shweviti, assim se chamava o monarca, o que em Birmanês significa, literalmente, “guarda-sol mais alto de ouro”, encontrava-se em sérios apuros, cercado pelo seu rival, o rei de Ava. A determinada altura, Mendes Pinto, nessa sua condição mista de escravo mercenário, apanágio de muitos outros lusitanos, fez parte da guarda pessoal do rei birmane. Tirando partido da confiança que lhe fora depositada, aproveitaria para fugir, acompanhado por companheiros seus, tendo, após muitas peripécias, atingido o porto de Cosmim, onde encontrou um navio português, que o transportaria para Malaca.

Nessa jornada ao Calaminhã, Mendes Pinto presenciaria mirabolantes cortejos religiosos com carros, sacerdotes e fiéis que cometiam suicídios colectivos ritualizados, o que, só por si, e para quem conhece a região, fornece total credibilidade ao seu relato. Não se entende, por isso, por que motivo alguns dos estudiosos da “Peregrinação” consideram fictícia essa viagem. 
O escritor descreve-nos a cidade de Timplão, capital do dito reino, “situada ao longo de um grande rio chamado Pituy, frequentado de infinitas embarcações de remo”, destacando a importância dos elefantes, símbolo de poder encarnado pelos reis locais. Pinto dizia que o soberano era “senhor das forças brutas do elifantes da terra”. Estes e outros dados permitem-nos identificar, com alguma liberdade, o Calaminhã com o Laos, que ainda hoje ostenta o cognome “reino dos milhões de elefantes”.

Joaquim Magalhães de Castro

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