Despojos de guerra
Construído originalmente em 1447, o edifício principal do Kraton preserva o chão de mármore e no tecto os candelabros franceses. As colunas piramidais exteriores são invulgarmente altas e toda a estrutura acusa um misto de estilos arquitectónicos sundaneses, javaneses, islâmicos, chineses e europeus, entrado aqui aquela tão comum espiral recurvada de clara tradição portuguesa que vemos nos pórticos e fachadas de muitos edifícios indonésios e à qual é erradamente atribuída origem holandesa.
Embora o sultão e família continuem a residir no Keraton Kasepuhan, várias secções do vasto complexo encontram-se abertas ao público a troco de alguns milhares de rupias. Há por aqui vários pavilhões com paredes caiadas salpicadas de pequenos azulejos azuis e brancos. Este tipo de porcelana, o Delft Blue, produzida na cidade holandesa que lhe empresta o nome desde o século XVII – mais precisamente entre 1600 e 1800 –, era o orgulho das famílias abastadas que faziam questão de os exibir uns aos outros. A porcelana Delft não passava de uma versão mais barata da verdadeira porcelana chinesa, não obstante, imensa era a sua popularidade. No apogeu da produção desse tão apetecido bem de consumo haveria em Delft 33 fábricas; hoje, resta apenas uma. São também comuns nos jardins do palacete colados nos velhos muros revestidos de musgo e evocativos nos templos de Bali, sinal do legado hindu do império de Majapahit, pratos de cerâmica azuis, verdes, lilases, variando os motivos e as paisagens, europeias ou orientais, aqui e ali intervalados com azulejos de Delft.
Das reminiscências hindus, apenas restos de piras rituais em granito esquecidas a um canto do jardim, pois as estátuas imortalizadoras das divindades do fértil panteão encontram-se repartidas, acompanhadas de espólio outro, pelas várias salas em que se divide o museu local. Para meu espanto, no espaço principal, entre marionetas, krises e indumentária real bastante poida,deparo com dezenas de armaduras – cotas de malha é mais correcto dizer – penduradas em cabides num armário de vidros frágeis e baços. A informação na língua local, “portugis baju logam”, ou seja, “roupas de metal dos portugueses” e a data indicada, “c. 1527”, são por demais elucidativas. Eis-me perante as malhas envergadas pelos soldados portugueses que morreram na batalha de Jacarta frente às tropas de Sunan Gunung Jati! Quem diria: descobrir, por mero acaso, os despojos dessa épica batalha cuja data assinala a fundação da cidade de Jacarta. Outros objectos ali exibidos reforçam a evidência: junto a umas jarras de barro repousam em apropriados estrados de madeira pequenos berços e falcões, alguns certamente de origem portuguesa como bem nos avisa um apropriado letreiro: “meriam dari portugis”. Nesta sala principal conto nove peças; num espaço contíguo, outras dez, entre as quais duas lantacas. Num dos velhos armários repousa uma espingarda em óptimo estado – “senapan dobel lup dari portugis” (espingarda de cano duplo portuguesa) – ao lado de uma outra de fabrico egípcio. Também resguardado por uma finíssima vidraça de armário exibe-se uma bela espada de esgrima, “pedang pelantikan”, sem que seja indicada a sua origem. Noutras vitrinas prossegue a saga bélica em forma de pontas de azagaias, baionetas, lanças, tridentes e arpões, às dezenas, e vestes das tropas locais e ainda um reposteiro para arcos e flechas. Noutro móvel há um curioso sino e mesmo ao lado umas dezenas de balas de pedra, “batu peluru bandil”, com um diâmetro considerável. O termo “peluru” deriva do português “pelouro”. Nota curiosa: junto a alguns dos objectos exibidos há quem tenha deixado notas de baixo valor. Acompanham os pelouros, por exemplo, uma nota de cinco mil e outra de dez mil rupias. Acresce a todo este material de guerra algumas mesas, cadeiras e mobília avulsa de óbvio estilo europeu, “meja dan kursi model Eropa”, interessantes quadros de paredes com alto relevo combinados com pratos de cerâmica e numa outra duas cenas eróticas em alto-relevo.
Numa outra repartição sou confrontado com cerâmicas japonesas, joias datadas de 1526, cristais franceses de 1738, o crânio de um crocodilo e instrumentos musicais de percussão, sobretudo gongos e xilofones, os principais componentes de uma típica orquestragamelão. Um desses gongos, datado de 1495, oferecido pelo sultão de Demak e usado para converter hindus ao Islamismo, ainda hoje é utilizado em cerimónias oficiais. O cenário é fácil de visualizar: ao mudar-se de armas e bagagens para Cirebon, o santo-guerreiro trouxe de Banten inúmeros objectos agora exibidos na sua antiga residência, de resto, como recorda a sinalética (quando a há) à frente dos mesmos. Todo este património merecia um maior cuidado, não só no modo como é apresentado ao público, como também no seu resguardo. Querem maior prova de desleixo do que umas quantas beatas de cigarro atiradas para um canto da sala? Um cigarro mal apagado e tudo aquilo arde num ápice.
No exterior, enterrados na relva de um jardim, estão dois canhões de maior porte e um pouco mais adiante candeeiros públicos anunciam um outro polo museológico, este dedicado a carroças votivas e de protocolo. Mas antes de chegarmos aos carros alegóricos decorados com garudas e touros alados há que passar pelos mostruários contendo machetes, catanas, krises, espadas de samurai, gládios europeus e uma lantaca com boca de dragão – certamente fabricada no Brunei. Destaco aqui uma carreta, mais simples, com oito gigantescas rodas de madeira, e a Kereta Singabarong, carruagem dourada do século XVI ainda hoje utilizada em ocasiões solenes. Ficou por ver a secção do museu com objectos antigos, a Benda Kuna, fechado na altura; e ainda, por detrás de uns muros altos, as ruínas de um templo hindu com vários poços e jardins.
Joaquim Magalhães de Castro