Java Menor – 4

Portos e crustáceos

Em 1552, Fatahillah, futuro Sunan Gunung Jati, abandona Banten com a missão cumprida, e vai pregar para Cirebon onde permanecerá até à data da sua morte, em 1570. Terá nessa altura abdicado em favor do filho Maulana Hasanudin (ou Pangeran Sedakingking), o segundo monarca muçulmano da história de Sunda. Seria o filho deste, Maulana Yusuf ou Pangeran Pasareyan (1570 a 1580), o carrasco responsável pelo golpe de misericórdia executado no que restava do reino hindu de Pajajaran, ao ocupar a sua capital no interior, Pakuan, actual Bogor, em 1579. Tratou-se, sem dúvida, de uma jogada de antecipação prejudicadora dos interesses dos portugueses, até então aliados dos reinos hindus de Sunda.

A versão indonésia dos acontecimentos é um pouco diferente, embora também ela acompanhe a viagem de Tomé Pires (1513) no decorrer da qual o português nos dá conta do Hinduísmo praticado em todos os portos de Sunda – a saber: Banten, Pontang, Cikande, Tangerang, Kalapa (Sunda Kelapa), Karawang e Cimanuk (Indramayu) – tendo ele, muito provavelmente, visitado todos esses lugares. Depois de zarpar de Cimanuk, Pires seguiu para Cirebon, apercebendo-se então que esse porto se encontrava já sob o domínio do reino de Demak, e dava início a um processo de islamização muito próprio cuja sedimentação aconteceria apenas nos finais do século XVI. Ora, a situação deixava Sang Ratu Jayadewata – o prabu, rei de Sunda – deveras preocupado, daí que tivesse tudo tentado para atrair aos seus portos os portugueses, tradicionais opositores do Islão, logo – e seguindo a lógica do adágio “os inimigos dos meus inimigos meus amigos são” – implícitos aliados. Tratou imediatamente de negociar com eles um tratado de amizade assinalado com a colocação de um padrão.

Presume-se que tenha sido o representante do rei, Sang Prabu Sariwesa – senhor de Sangiang (“o Samian” das crónicas portuguesas) – quem directamente lidou com os portugueses, viajando, em 1512, até Malaca. Ofereceu-lhes, em nome do seu soberano, o comércio da pimenta em troca de apoio militar em caso de ataque por parte de Cirebon e Demak. Seguir-se-ia a já mencionada viagem exploratória dos portos da costa norte do Mar de Java (na qual participou o boticário Pires), e o acordo prometido foi sendo protelado para as calendas. Sunda, impaciente, envia de novo Sang Prabu Sariwesa a Malaca, desta vez obtendo o que pretendia, pois um ano depois uma armada desceria ao reino de Sunda com presentes e um padrão que, segundo a versão indonésia, não seria colocado em Banten mas sim em Kelapa. Daí teriam viajado os emissários, rio acima e durante dois dias, até à capital de Sunda, Pakuan, que os portugueses designavam de Dayo. Henrique Leme e seus homens seriam solenemente recebidos por Sang Prabu Sariwesa, que, curiosamente, um ano antes tinha ocupado o trono deixado vago após a morte de Sang Ratu Jayadewata.

O acordo luso-sundanês, assinado a 21 de Agosto de 1522, previa total apoio militar contra os muçulmanos em troca do trato da pimenta e ainda a construção de uma fortaleza por parte dos portugueses. Eram estes os nomes dos homens de Henrique Leme: Fernão de Almeida, Francisco Eanes, Manuel Mendes, João Coutinho, João Gonçalves, Gil Barbosa, Tomé Pinto, Sebastião do Rego e Francisco Dias. Apesar da promessa militar, a verdade é que Sang Prabu Sariwesa teve de lutar sozinho contra os muçulmanos e fê-lo, segundo a crónica Carita Parahyangan, “quinze vezes”, tendo sempre “saído vitorioso” dessas batalhas. A situação hostil continuaria no reinado do sucessor, rei Ratudewata, 1535 a 1543, que terá morrido num dos sucessivos ataques ao palácio real. Afinal, o poderio militar português ficara muito aquém das expectativas e nem sequer fora suficiente para desalojar de Jacarta as forças de Fatahillah.

Em jeito de acrescento, convém lembrar que vários historiadores indonésios identificam Fatahillah com Syarif Hidayatullah, o conquistador de Cirebon. Ele e Pangeran Cirebon, filho do príncipe Cakrabuana, teriam estado à frente dos exércitos que conquistaram Jacarta e nos anos seguintes travaram batalhas e venceram os portuguesas no porto dessa cidade.

Cirebon tem como sede do poder municipal um curioso edifício arte deco, com camarões douradas feitos gárgulas nos quatro cantos da fachada. Não é menos interessante o interior de vidro e ferro forjado ao jeito europeu, pois em tempos aqui esteve sedeado (como o comprova uma foto de 1927) o poder colonial. Ontem, a Raad Huis holandesa; hoje, a Kota Balai indonésia. O camarão está para Cirebon como o cervo está para Indramayu. É motivo inspirador e honra um dos principais motores da economia de uma cidade que foi já capital de um importante sultanato. Resfolegam nas rotundas as estátuas, de crustáceos e figuras históricas, a lembrar-nos isso mesmo.

Resistem à implacabilidade do tempo raros edifícios coloniais, velhos armazéns, nas imediações do palácio de Cirebon – o Keraton Kasepuhan – que tem como vizinhança uma pequena mesquita de tijolo vermelho com portão amarelo e verde em cujo pátio interior relaxadamente disputam jogos de xadrez alguns homens e deambulam os habituais felinos, invariavelmente de cauda partida, facto que ainda hoje para mim constitui verdadeiro mistério. Por que razão a maioria dos gatos indonésios têm a cauda quebrada?

Joaquim Magalhães de Castro

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