O keroncongde Leonidas Salomon
Desde o início do século XVII, a VOC trouxe para Batávia e demais portos das Índias Orientais Holandesas inúmeros escravos da Índia, do Ceilão e, após a tomada de Malaca, em 1641, também muitos prisioneiros de guerra. Todas essas pessoas, independentemente de terem ou não ascendência portuguesa, eram designadas de “portugueses”, pois comunicavam entre si no idioma de Camões e professavam o Catolicismo.
Entre os esforços empreendidos pelos holandeses para tentar eliminar as marcas culturais que os caracterizavam, consta a obrigatoriedade de adoptar nomes holandeses – ou, pelo menos, com sonoridade holandesa – e a troca da sua fé católica pelo Calvinismo. Em 1661, muita dessa gente acabaria por ser libertada, precisamente por aceitarem a conversão. Em jeito de “recompensa” ser-lhes-ia atribuído um pedaço de terra situado a dez quilómetros do centro da velha Batávia e a dois do porto de Tanjung Priok, chamado Tugu (Toegoe, na ortografia holandesa), hoje Kampung Tugu. Curiosamente, uma das ruas que nos conduz a este bairro tem designação portuguesa. Trata-se da Jalan Enggano, ou seja, “rua do engano”. Essas pessoas eram conhecidas como mardijkers, da palavra indonésia “merdeka”, que significa liberdade. Até recentemente, havia uma Tanah Merdeka – “terra dos homens livres” – nas proximidades de Tugu.
A actual igreja da comunidade “tugunesa” foi mandada erguer, entre 1744 e 1747, pelo senhorio Julius Vinck, dono de toda a área de Cilincing e Pasar Senen, e o seu recheio é bastante simples: alguns bancos, placas de metal e um antigo púlpito. O sino da torre é de 1880, pois o anterior, datado de 1747 – altura em que o culto se fazia em Português e Malaio – quebrou. Este templo substituiria um mais antigo destruído em 1740 por gangues de chineses itinerantes. De acordo com a tradição local, a dita igreja situava-se em Tanah Serani, ou seja, “terra cristã”. A escola, nas imediações, considerada a primeira escola rural da ilha de Java, fora fundada em 1648.
Apesar da conversão forçada e do isolamento, o povo de Tugu manteve viva a sua identidade durante séculos. Ali se falava o “papiá tugu”, crioulo de base portuguesa muito semelhante ao “papiá kristang” de Malaca. Infelizmente, à excepção de algumas palavras avulsas, e ao contrário do que acontece em Malaca, já ninguém domina o “papiá tugu” de Jacarta. O último falante deste crioulo, Jacob Quiko, faleceu em 1978, e o dialecto subsiste apenas em alguns poemas e canções.
A música é o traço mais característico desta comunidade afamada pela fabricação local de instrumentos: guitarras, macinas (um tipo de bandolim), flautas, violinos e keroncongs de cinco cordas. Keroncong (ou kroncong)designa ainda um tipo muito especial de música que, tendo como ponto de partida Tugu, se espalharia por toda a Indonésia. O mais conhecido, o keroncong moresco (keroncong mourisco), lembra as mornas de Cabo Verde e é base de muita da música moderna indonésia. Aliás, também no extremamente popular dangdut encontramos óbvias reminiscências lusitanas. Recorde-se o nome do artesão e músico Leonidas Salomon que, até à década de 1970, construía guitarras de keroncong de cinco cordas e as vendia em Pasar Baru, em Jacarta. Além da música, subsistem apelidos lusos – Koeyko (Coelho?), Da Costa, Mayo – e as tradições que se julgavam perdidas são reavivadas durantes as festividades que regularmente acontecem no bairro, tornando-o, de certa forma, numa atracção turística. Em dia de festa, os mais jovens envergam roupas pretas e chapéus de aba, “ao estilo português”, enquanto recriam cantigas e danças de origem portuguesa, tal como fazem os seus patrícios de Malaca.
Durante a ocupação japonesa e o período de convulsão social que se seguiu (1942-1949), a gente de Tugu seria inúmeras vezes importunada e ameaçada por fanáticos, tendo-lhes valido, na altura, Haji Maasum, um oficial do exército que demonstraria ser um verdadeiro protector desta comunidade tão “sui generis”. Em 1946 e 1947 muitos tuguneses mudaram-se para o bairro de Pejambon, junto à igreja Emanuel, a uma centena de metros do parque Monas. Algumas famílias ainda aí moram. Em 1950, após a independência do País, outros optariam por mudar-se para Hollandia (agora Jayapura), na Nova Guiné, e em 1962 – altura em que província foi entregue à Indonésia, passando a denominar-se Papua – rumaram ao Suriname, via Amesterdão.
Apesar dos esforços encetados pelas autoridades das Índias Orientais Holandesas, no sentido de levar esta gente a perder a sua identidade, Portugal, país que não conhecem mas esperam um dia poder visitar, continua a ser acarinhado, pois a comunidade de Tugu considera-o seu também.
Joaquim Magalhães de Castro