O crioulo que entendemos
Ao sermos confrontados com o caos humano e rodoviário de Jacarta é-nos difícil imaginar que algures, nalguns dos seus recantos mais ocultos, subsistem traços de uma presença secular que envolveu aventureiros, mercadores, soldados e missionários portugueses. Pouca gente sabe, por exemplo, que ao longo de todo o século XVI o Português foi a língua franca, não só no arquipélago indonésio como em toda a área geográfica circundante; e ao ponto de, nos primeiros anos do seu domínio colonial, os holandeses serem obrigados a aprender o luso idioma de forma a poderem beneficiar do comércio que exerciam nos diferentes portos da região.
O “crioulo português de Batávia” (mais correcto classificá-lo assim) era também língua de prestígio que os mestiços e indígenas utilizavam como forma de afirmação social. Em 1596 os holandeses depararam em Jacarta com um syahbandar que falava Português, o que lhes permitiu inteirar-se da importância a cidade enquanto entreposto comercial.
Seria, de resto, a VOC a fomentar o uso do Português em Batávia, incapaz de implementar o próprio idioma nas escolas. Até os pregadores calvinistas foram obrigados, muito a contragosto, a aprender a língua dos rivais católicos para se fazerem entender e assim conseguir alguma eficiência evangelizadora. E, como havia necessidade de ter a tradução completa da Bíblia em Português reinol, entregou-se a tarefa ao calvinista português João Ferreira de Almeida, que a expensas da Companhia Holandesa das Índias Orientais veria o seu trabalho publicado em Amesterdão, em 1681. A própria VOC adoptaria vários termos portugueses no seu vocabulário, como por exemplo: aguade (aguada); alfandigo (alfândega); armada; calcula (cálculo); fetor (feitor); gastos; porto; e seguro. Para bem dominar a língua portuguesa – à semelhança do que há muito vinham fazendo inúmeros compatriotas seus – os funcionários da VOC utilizavam-na sempre que podiam.
Em 1606 escreve Duarte Nunes de Leão no seu “Origem da Língua Portuguesa”: “Os homens desses Estados (Flandres) tanto pretendem saber a língua portuguesa, por o muito comércio que com os Portugueses têm, que todos os anos, nas naus que a Portugal vêm, continuamente mandam muito número de moços, filhos de mercadores e tratantes, a aprender a língua portuguesa, e serve só pelo prémio de a saberem”. Há vários testemunhos da época que corroboram esta realidade. O corsário suíço Elié Ripon, autor de “Voyages et Aventures du capitaine Ripon aux Grandes Indes, Journal inedit d’un mercenaire” (1617-1627), começou a sua aventura em Java, em 1618, e regressou a Europa em finais de 1627. Entrementes, combateu em terra e no mar contra portugueses, espanhóis, ingleses, piratas e indígenas. Nesse seu caderno de viagens (editado apenas em finais do século XX), e a respeito de um ataque a Batávia, em 1619, podemos ler: “mas não víamos ninguém, apenas ouvíamos as vozes dos portugueses que gritavam ‘Jesus! Virgem Maria!’”.
A manutenção da língua portuguesa, em Jacarta, tal como em Larantuca, nas Flores, ficou a dever-se aos “tupaços” ou “topasses” – na opinião de alguns investigadores – termo utilizado pelos portugueses para designar aqueles que dominavam as duas línguas (tupaço – dua bahasa). Em suma: no século XVIII o Português era ainda a língua de comunicação entre os estrangeiros que residiam e mercandejavam nas Índias Orientais Holandesas, embora estivesse cada vez mais crioulizado, com mais palavras malaias; e só no início do século XIX é que passariam a recorrer ao idioma holandês.
Nos museus de Jacarta encontramos muita documentação e até vestígios tangíveis da presença lusa, entre os quais a reprodução do tratado assinado entre os portugueses e os príncipes de Sunda Kelapa (o antigo nome de Jacarta), em 1522. O Museu Central guarda numa das suas salas o padrão de dois metros de altura que os portugueses ergueram em terra javanesa para assinalar o facto. Também lá está um sino de bronze, de uma outra época e com a seguinte inscrição: “Este sino foi mandado fazer pelo Vice-Rei da Índia para o Rei de Matarão em 1633”.
Por sua vez, o Museu Nacional guarda uma garrafa e um prato em porcelana Ming com o emblema da Casa Real Portuguesa. O antigo encarregado de negócios português na Indonésia, António Pinto da França, acredita que esses utensílios seriam parte de uma encomenda feita por portugueses, e, como afirma na sua obra “Portuguese influence in Indonesia”, ele próprio terá encontrado, algures em Java, um jarro Ming com a imagem de várias igrejas e duas figuras humanas, provavelmente uma representação de Macau. Não muito longe do museu e da rua Jalan Roa Malaka, está a Gereja Portugis, que apesar do nome é de culto protestante. Há quem afirme que foi construída, no século XVII, no local onde outrora existia a capela católica da comunidade lusa de Jacarta, embora a explicação mais lógica é de que seria esta a igreja frequentada por uma minoria de portugueses convertidos ao Protestantismo pela força das circunstâncias. E devido a isso, os serviços religiosos e os sermões efectuados na Gereja Portugis eram sempre em Português.
O historiador e jesuíta J. F. Heuken debruçou-se com bastante profundidade à temática da origem de Sunda Kelapa, não só compilando documentos anteriores à chegada dos primeiros navios portugueses a Sunda, em 1513, como analisando as observações presenciais de pioneiros portugueses como Tomé Pires, Duarte Barbosa e Fernão Mendes Pinto.
Joaquim Magalhães de Castro