JAVA MENOR – 19

JAVA MENOR – 19

Tugu Portugisde Situbondo

Sobrevive hoje em Situbondo, a cerca de três quilómetros da costa e a leste do rio Sampeyan, rodeado de campos de arroz verdejantes e na circunvizinhança da pequena aldeia de Peleyan, um pilar que os locais designam de “monumento dos portugueses”. Não há qualquer sinal que conduza o viajante. Por isso, munido da informação recolhida na Internet, vejo-me obrigado a fazer uma série de breves inquéritos até conseguir lá chegar. Informa-me um dos moradores que o monumento é frequentemente visitado por gente de Surabaya e Jacarta. Lembra-se bem, «desde criança», dessa pilastra, e não tem dúvidas quanto à sua origem: «foi aqui colocado pelos portugueses». De cor branca e com o estuque esboroado, aqui e acolá revelando o tijolo, cercado de ervas daninhas em toda a volta, a estrutura nada tem de extraordinário. O seu real valor reside naquilo que representa – e citando Edy Burhan Arifin, historiador da Universidade de Jember –:“o único e remanescente sinal da herança portuguesa em Panarukan”.

Conhecido desde a era Majapahit, Panarukan era talvez o único porto importante na costa leste de Java. Daí a decisão dos portugueses fazerem do local ponto de escala obrigatória. Aí edificaram várias igrejas que, com a expansão do Islão e a acesa luta pelo poder, acabariam destruídas. Obviamente, bem mais cavo e largo era, nessa época, o rio Sampeyan, o que permitia aos navios de grande calado nele entrar. Tal era a relevância de Panarukan que já no século XIX o governador-geral Herman Willem Daendels a escolhera para terminus da afamada Post Road, em cuja construção foi utilizada mão de obra javanesa sem direito a qualquer remuneração. Milhares de operários pereceriam face à dureza dos trabalhos e às febres contraídas nas zonas pantanosas. Daendels tinha perfeita consciência do potencial económico de Panarukan, assim como da sua importância estratégica em termos defensivos. “Produtos de primeira necessidade produzidos no extremo leste de Java chegavam a outras partes da ilha via Panarukan”, afirma Edy Burhan Arifin, autor do livro “Quo Vadis, Situbondo”. Não é ainda claro o estatuto patrimonial do Tugu Portugis, mas pode mudar em breve o panorama graças à sua divulgação nas redes sociais. É um dos locais favoritos dos jovens – da região e não só – que gostam de ser fotografados em frente ao monumento com ar sorridente. Diz-me o morador de uma casa ali próxima que um autarca lhe pedira que tomasse conta do monumento «a troco de duzentas mil rupias». Só que depois não houve qualquer «continuidade do plano», e a ruína na companhia dos verdes e viçosos arrozais continuaria. Em tempos protegia-o uma corrente de ferro e um aviso alertava eventuais vândalos para esse «activo do Governo». O certo é que as correntes há muito deram sumiço, «roubadas por alguém que as vendeu ao ferro velho». O senhor Sugik, assim se chama o meu interlocutor, espera que as autoridades cuidem, como prometeram, do Tugu Portugis, até porque na aldeia de Peleyan há dois outros monumentos semelhantes. «Parecem vestígios das fundações, o que significa que haveria por aqui várias casas de portugueses», conclui o lojista.

Malgrado a prolongada permanência, pouco se sabe acerca das relações dos portugueses com os habitantes desta parte oriental de Java. Sabe-se, por exemplo, que por volta de 1528 foi assinado um tratado de paz entre os delegados do rei de Blambangan (actual Banyuwangi) e os portugueses de Malaca, e que em 1526 vinte navios portugueses vieram a essa cidade fazer aguada e prover-se de mantimentos. Dois anos depois há notícia de um tal Garda (?) Henriques ter comprado nesse reino hindu quantidade significativa de arroz e gado. Em 1535 era a vez de António Galvão visitar Blambangan, retribuindo assim a missão diplomática hindu efectuada sete anos antes. Em 1559, o jesuíta Baltazar Dias, a caminho de Solor, refere “o rei gentio de Blambangan” na missiva enviada aos seus superiores. Entre as escassas fontes que nos dão conta do sistema social e económico vigente em Blambangan, pontua o testemunho de Tomé Pires. O cronista-boticário dá-nos conta da existência na ilha de Java de inúmeros escravos, conhecidos localmente como huluns. Ora, Blambangan era precisamente um dos portos exportadores desse “produto” laboral. Realça ainda Pires a forte dependência local de arroz, daí as forças da VOC terem decidido queimar os celeiros da cidade no decorrer do ataque a Panarukan, em 1596. Nesse mesmo ano dava-se início à construção do porto de Ulu Pampang, numa península no extremo sul de Java, mesmo em frente a Bali – capaz de acomodar embarcações maiores, pois o de Panarukan mostrara ser vulnerável. Três anos depois estanciava em Ulu Pampang o corsário Francis Drake, vindo de uma viagem de circum-navegação iniciada em 1577 e concluída em 1580, ano em que lhe seria atribuído o título de cavaleiro pela rainha Elizabeth I. Também a armada do seu compatriota Thomas Cavendish aportou em Java Oriental em 1588 – talvez a primeira tentativa de fixação britânica –, e aí permaneceu dezasseis dias, provendo os porões dos navios Pretty e Wiliems com matérias-primas. Por mais estranho que pareça, o inglês seria muito bem recebido pelos casados portugueses de Blambangan (na época ainda reino hindu) que, inclusive, lhe forneceram importantes dados sobre a presença lusa na região. Pelos vistos, vem de longe a inexplicável subserviência dos portugueses aos súbditos da ilha além Mancha…

Dos monarcas de Blambangan, realce-se aqui o sultão Tawang Alun, cujas acções seriam amplamente registadas nos arquivos da VOC, sobretudo durante o último período de seu reinado. Pasmavam os escribas holandeses com a espectacularidade do cortejo e exéquias fúnebres prestadas a esse monarca (falecido a 18 de Setembro de 1691), no decorrer das quais se imolaram – no conhecido ritual hindu sati, que Afonso Albuquerque abolira em toda a Índia Portuguesa quase dois séculos antes – 271 das suas quatrocentas esposas!

Joaquim Magalhães de Castro

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