O porto de Cimanuk
Demoro algum tempo mas acabo por chegar à conclusão que a Indramayu que tantas vezes visito, afinal, corresponde à Cimanuk mencionada nos textos de Tomé Pires, boticário, autor do primeiro tratado geográfico europeu sobre aquelas paragens. Embarcaria o dito, como feitor, numa das naves da expedição ordenada pelo primeiro capitão de Malaca, Rui de Brito Patalim, encarregada da exploração da costa setentrional de Samatra e Java. Tratava-se de uma armada de quatro navios liderada por João Lopes de Alvim e a viagem duraria três meses e oito dias – de 14 de Março a 22 de Junho de 1513. Resultantes dela, na toponímia local, temos os nomes “Aguada do Alvim” ou “Aguada do Siguide” (do rio Ci Gede, actual Ci Sadane que banha Tangerang) – se bem que nalguns mapas a “Aguada do Siguide” surja junto ao rio Cimanuk, muito para lá de Jacarta – ou ainda “Aguada do Padrão”, pois seria aí colocado um padrão. Recorde-se que poucos meses depois desta jornada, havia já notícia de um português envolvido em negócios naquelas paragens. Trata-se de um tal Pero Barbosa, “provedor de defuntos de Malaca, que lá mandou pelo junco da viúva do tumungão (juiz) Aregimute Raja fazenda do recém-falecido feitor Pero Pessoa”, como escreve Tomé Pires.
Com uma qualidade bastante superior às bem mais corriqueiras pimenta-longa e pimenta-de-rabo, a pimenta-negra constituía o produto mais procurado pelos senhores hindus de Sunda, onde era abundantemente produzida em ambos lados do estreito (entre Java e Samatra), conhecido pelos portugueses como “boqueirão de Sunda”, e que os locais denominavam de Teluk Lada, o “golfo da pimenta”.
É bem provável que o boticário português tenha permanecido algum tempo em Cimanuk, se bem que na altura esta não passasse de um pequeno povoado de pescadores e se designasse Darma Ayu. À sua origem está associado um mito que envolve belas princesas e cervos, animal ainda hoje símbolo-mor da cidade com direito a estátua em algumas rotundas, embora seja a estatal petrolífera Pertamina a monopolizar as conversas do dia-a-dia (e a espoletar a inveja de muitos) enquanto alumia em permanência o céu com as suas labaredas. Só a partir de meados do século XVI, talvez em 1527, e de acordo com uma crónica coeva, a cidade vestiria o definitivo Indramayu. É bem possível que vários mercadores portugueses ali se tenham estabelecido e, ao longo dos tempos, constituído família.
Da presente comunidade católica local (com quem celebrei recente consoada natalícia) não há memória de tal, sendo o período colonial holandês a única referência europeia. Assinala a zona histórica da cidade um conjunto de casarões chineses nas imediações do rio-canal, “o pequeno Cimanuk”, onde anualmente se celebra uma festividade, pois o veio principal do rio – o tal que nos mapas portugueses seiscentistas surge como divisória entre Sunda e Java – corre a uns quilómetros dali.
Abriu portas não há muito tempo um museu que tem por mote a feliz frase do Presidente Sukarno: “uma grande nação é aquela que respeita a sua História”. Indramayu orgulha-se de ter sido um “centro civilizacional” quando se chamava ainda Bandar Cimanuk, ou seja, “porto de Cimanuk”. Instalado num dos poucos edifícios antigos da cidade velha, o polo museológico pede meças ao templo Antj Bio, à grande mesquita e aos armazéns de arroz Rizst Pellerisz, uma óbvia reminiscência holandesa. Com o museu esperam as autoridades encorajar as gerações mais novas, pois “a protecção das antepassadas relíquias” é dever de todos.
Outro património a não ser escamoteado, denominador comum sempre que atravessamos as pontes sobre os rios nascidos nas encostas dos vulcões, as centenas de barcos alinhados em sucessivas fileiras numa espécie de infindo estacionamento fluvial. Estamos em pleno território de pesca e há quem aqui faça fortunas com a actividade, graças não só ao peixe fresco e ao marisco como também aos seus múltiplos derivados, como é o caso dos afamados “krupuks”, aperitivo insuflado e estaladiço, presença constante nas mesas dos restaurantes ou nas estantes das vendas ambulantes por mais humildes que sejam.
Num dos canais de ligação ao mar deparo com um verdadeiro estaleiro a céu aberto. Há aí muitas e bonitas embarcações, inteiramente de madeira. Tábuas acabadas de serrar revelam o muito que ainda há a fazer no preparo de algumas delas, enquanto se aplicam, nos cascos e amuradas de outras tantas, os últimos retoques a pincel em imaginativas pinturas de cenário variado. Pode ser ele deserto escarpado feito de “cowboys”, cavalos e cactos, ou um simples e bem amanhado cesto de mangas acompanhado do elucidativo Kota Mangga, “a cidade das mangas”, a fazer jus às inúmeras mangueiras de generosa sombra que coalham as ruas da cidade e arredores. É reputada a fama das mangas de Indramayu, as mais doces de toda a Indonésia. No costado de um dos barcos vejo estampado um desenho alusivo ao limite da rota marítima utilizada pelas companhas locais: “Indramayu-Arafura Sea”. Esta gente chega a ir pescar nas proximidades de Timor!
Joaquim Magalhães de Castro