Preparar o Natal dos outros
Falamos de bolo-rei e presépios, mas podíamos falar de pinheiros ou outros adereços. São muitos os que nesta altura do ano trabalham para que cada família possa viver o Natal em alegria, com todo o simbolismo que esta época acarreta. Venha daí conhecer dois profissionais que fazem questão que o Natal das pessoas seja mais rico por causa deles.
Todos aqueles que vivem o Natal preparam-no de uma forma especial. Apesar de muitas coisas serem feitas à mão, em casa, pelos próprios, muitas não o são, seja por falta de tempo, jeito ou logística. Poucos fazem em casa o bolo-rei, ou sequer constroem o seu próprio presépio, mas compram tudo já feito, para embelezar a mesa, a casa ou satisfazer a “gula” da família que se junta à volta da mesa para celebrar o nascimento do Deus Menino.
Apesar de haver registo que os romanos comiam um bolo com fava para decidir quem seria o “rei da festa”, o tradicional bolo-rei que hoje é confeccionado em Portugal foi criado em França, no tempo de Luís XIV, para celebrar o Natal e o Dia de Reis. Caiu em desuso depois da morte do rei, mas ainda conseguiu chegar a Portugal, onde começou a ser confeccionado pela Confeitaria Nacional em 1870. Uma tradição com quase 150 anos que José Lopes, pasteleiro, perpetua.
Encontramo-lo na pastelaria Camões, em Lisboa, bem perto do Bairro Alto, a colocar uma fornada de bolos-reis no forno. São 8 horas e 30 da manhã, e o calor da cozinha contrasta com o frio invernal que se faz sentir na rua. «Sou pasteleiro há quarenta anos, comecei como aprendiz e fui sempre crescendo», conta, adiantando que a sua escola foi a do “aprender fazendo”: «Não tenho cursos, sempre fui aprendendo com os outros, e os outros comigo».
Sobre o bolo-rei, refere que é aquilo que mais sai durante o Natal, apesar de venderem outras iguarias natalícias como sonhos, filhoses, lampreias de ovos, entre outros. «Já tive anos em que fizemos mais de uma tonelada de bolos-reis, tudo na semana anterior ao Natal, tive dias sem dormir», lembra a rir, para mostrar que a época do Natal é das mais trabalhosas do ano, principalmente no que diz respeito ao bolo-rei. «Às vezes, chego a casa na noite de Natal e doces nem vê-los», diz, bem-disposto, enquanto põe uma camada de geleia por cima dos bolos-reis que acabaram de sair do forno.
Mas este cansaço é superado pela noção de que, pela sua mão, o Natal dos outros tem outro sabor. «É bom saber que o que fazemos contribui para a família se juntar à volta da mesa. Nós procuramos fazer a pensar nisso, porque contribui para o bem-estar das pessoas, embora por vezes nem nos apercebamos, porque faz parte do nosso trabalho, e procuramos sempre cumpri-lo bem», afirma.
Apesar de tudo, este é um bolo especial. «Todos os bolos alimentam, mas estes são especiais e fazemo-los com mais carinho. Nesta época sabemos que temos de dar o nosso melhor, porque é algo que será utilizado num momento de convívio» entre as famílias, diz José Lopes.
O processo de confecção não é simples ou rápido, embora as tecnologias actuais permitam acelerar o processo. «Antigamente amassava-se na véspera para se fazer no outro dia, a massa ficava amassada a levedar e no outro dia era confeccionado. Hoje em dia já há métodos mais rápidos, mas ainda demora pelo menos umas três horas a fazer, para fazer um bolo-rei bom. Primeiro fazemos a massa e deixamos a descansar um pouco, depois introduzimos os frutos secos e tem um período longo de descanso. Depois divide-se a massa em pequenas bolas para tender os bolos-reis pequenos ou maiores, descansa na mesa já com a forma, vai para o tabuleiro para levedar novamente e leva os frutos cristalizados por cima. Finalmente vai ao forno já todo enfeitado. Quando sai, é pintado com geleia e arrefece para ser vendido ao cliente», explica, embora o processo tenha em todas as fases os seus truques, que não se revelam.
Em Ferreira do Zêzere também se trabalha para o Natal dos outros, embora não haja fornos ou massas a levedar. Carla Teixeira é uma artesã que faz presépios, uma das peças centrais na simbologia do Natal, que estiveram em desuso mas que agora voltaram em força, segundo a artista. «Estamos a retomar muito o presépio. Houve tempos em que as pessoas optavam apenas pelo pinheiro, mas agora voltámos ao presépio. Mesmo na catequese… Estamos no bom caminho», considera.
Há cerca de doze anos a trabalhar presépios, entre outras peças, Carla Teixeira mostra-se sempre «feliz e orgulhosa» quando alguém lhe mostra o presépio que pôs em sua casa ou lhe conta uma história de como o presépio afectou a vida de alguém. «É um orgulho andar pela rua e ver trabalhos meus, mas mais prazer dá quando sei que está em casa de uma família. É completamente diferente de qualquer outra peça que fazemos, isto tem um significado, e no final quando nos dizem “olha, eu tenho um” ou “eu comprei e ofereci e fiz uma pessoa muito feliz” é muito gratificante», diz, com um brilho no olhar.
No seu ateliê estão algumas imagens da Sagrada Família, em gesso pintado, bem perto da sua mesa de trabalho, mas fora isso já quase não se vêem por ali peças acabadas. É que, aqui, o Natal vem por alturas do Verão. «Começamos a trabalhar e a entregar em Julho, Agosto. Nesta altura, até já quase não tenho nada aqui no ateliê, já está tudo entregue nas lojas, começamos a pensar tudo muito mais cedo, ainda durante o Verão», conta, divertida, enquanto explica que, apesar de fazer muitas outras coisas, são as de Natal as mais especiais. «O Natal é sempre diferente. Desde logo, pelo significado. Mas depois, por tudo o que pomos nas peças. Não pintamos um presépio, pintamos o José, a Maria, o Jesus, e pomos muito significado nestas coisas, porque, como acreditamos, faz todo o sentido», assegura.
Estes não são presépios normais, já que as figuras tendem a ser mais infantis, uma marca da autora. «São presépios tradicionais, embora estes tenham um traço mais infantil, mais para crianças», diz, acrescentando que são propostas «únicas», que resultam muito bem. «No início, sempre trabalhei para o infantil, pelo que, quando introduzimos os presépios, seguimos esta linha. São presépios mais infantis, que os adultos compram muito para dar aos netos, aos filhos… e os coleccionadores, porque, como estes presépios são incomuns, todos os anos me pedem um presépio diferente», sublinha.
A dedicação e o carinho que coloca em cada peça são notórios enquanto observamos a autora pintar uma pequena peça de gesso com José, Maria e Jesus. «Quando trabalhamos», confessa, «nem sempre pensamos que tem esse significado mais profundo. Mas o facto é que tem, e isso é uma responsabilidade que temos». O presépio não deixa de ser também uma ferramenta de evangelização, mesmo para quem está mais afastado da Igreja. «Muitos dizem-me que não fazem presépios, apenas a árvore, mas quando lhes mostro outras opções de bonecos de presépio, acabam por achá-los engraçados e compram, porque ficam bem em casa, e às vezes ficam montados todo o ano. É uma forma subtil de evangelizar, até porque hoje em dia parece que não se pode falar muito disto, não fica bem… mas a presença do presépio acaba por fazer isso», defende.
A autora trabalha essencialmente em madeira de choupo, pintada ou não, e gesso. As peças em choupo demoram cerca de duas a três horas a fazer, enquanto as peças de gesso, que são encomendadas fora e pintadas ali no ateliê, podem demorar cerca de um dia, entre a produção do molde de gesso e a pintura. Um trabalho de «amor», marcado por um traço muito próprio: as cores. «São peças muito diferentes das outras. Este ano tenho alguns mais tradicionais à venda na loja, porque as pessoas pedem, mas eu gosto mais dos outros que eu faço, com mais cores. Apesar disso, o presépio é o tradicional, com a Sagrada Família», assegura.
Estes são dois exemplos. Muitos haverá, noutros campos de intervenção, de outros profissionais cuja função, nesta quadra, é garantir que o Natal em família é passado com qualidade, sabor e tradição. Um trabalho ao qual se dedicam todo o ano, mas com especial cuidado ao preparar esta época, em que a reunião da família é sempre especial.
RICARDO PERNA
Família Cristã