Os galeões de Acapulco
Nas cortes de Tomar, em 1581, aquando da consagração oficial da União Ibérica, Filipe I de Portugal e II de Espanha teve o cuidado de acautelar os interesses dos portugueses estabelecidos no Oriente interditando aos espanhóis de Manila o comércio com a China e obrigando aqueles, como contrapartida, a manterem-se afastados das Filipinas e do México, embora tais interdições nunca tenham sido postas em prática. É prova disso o facto do intercâmbio entre Macau e Manila jamais ter deixado de fruir, se bem que de modo clandestino e muitas das vezes protagonizado por navios chineses e de outras proveniências.
Mencionava em 1585, o jesuíta Alessandro Valignano, os protestos do vice-rei junto do governador das Filipinas e os recados aos responsáveis da cidade de Macau para que se vissem por lá castelhanos “sem ordem particular de sua majestade” os enviassem presos para a Índia. Cientes da sua fragilidade, com rei forasteiro a ocupar o trono lusitano, a maioria dos comerciantes macaenses defendia com unhas e dentes a proibição da ida de espanhóis à China, embora reivindicassem o direito de mandar navios a Manila, “pois só assim os seus interesses não seriam asfixiados pelos negócios dos espanhóis”, como nota o historiador José Manuel Garcia. Alegavam que a seda chinesa era insuficiente “para abastecer todos os mercados que a queriam”, e ainda que os espanhóis “desequilibravam as relações dos portugueses com os chineses” e faziam aumentar os preços da valiosa fazenda.
Curiosamente, não só os portugueses de Macau e da Índia pugnavam pela ausência de um contacto directo espanhol com a China, também o faziam os comerciantes de Sevilha, pois, a acontecer, tais contactos representariam menos prata a entrar nos seus cofres; e a verdade é que “a partir de inícios do século XVII” a prata do Novo Mundo começou a escassear em Espanha. Entre os opositores às medidas proibitivas contava-se o bispo de Malaca D. João Ribeiro Gaio, que via vantagens “em ser levantada a interdição de comércio entre os portugueses da China e os castelhanos da Nova Espanha, apontando o modo como este deveria ser efectuado”. É neste contexto que Macau assistirá a uma série de históricas viagens transoceânicas, a primeira das quais protagonizada pela nau San Juan que a 24 de Julho de 1584, praticamente em simultâneo com o galeão oficial San Martín, deixa a barra de Macau sob o comando de Francisco Gali, “marinheiro e cartógrafo” que, chegado de Manila no ano anterior, em Macau invernara. Tinha como destino Acapulco, onde chegará em Dezembro desse mesmo ano, e levava como piloto Alonso Gomez e, entre os tripulantes, vários marujos portugueses. De novo reunidos, San Juan e San Martín efectuam demanda de reconhecimento ao longo da costa norte-americana.
O arcebispo de Nova Espanha entregará a Gali o comando de dois navios e a missão de, no regresso a Manila, desvendar rota mais curta. Gali era depositário de uma elevada maquia, reunida por vários comerciantes do México, destinada à compra “de bens não determinados”, mas que todos sabiam ser a seda e demais refinada mercancia chinesa.
Porém, antes da programada viagem de regresso a Acapulco, Gali morre, tendo Pedro de Unamuno, até então o seu braço direito, assumido o comando da expedição. Fazendo ouvidos de mercador aos avisos da Audiência de Manila, “de que não deveria parar em Macau, sob pena de morte”, também Unamuno não resiste ao apelo do entreposto. Preparara este, no entanto, desculpa plausível – forte borrasca tinha-os arrastado até lá – mas que não evitou o apreso dos navios pelas autoridades portuguesas que de imediato informaram Manila. Desta cidade partiu o capitão Juan de Argumedo pronto a recuperar os navios (consegui-o) e a prender Unamuno, entretanto escondido graças à ajuda dos portugueses com quem fizera negócio. Após a partida de Argumedo, Unamuno comprou um pequeno navio, o Nuestra Señora de Buena Esperanza, e carregou-o com as mercadorias adquiridas com o restante numerário. Juntar-se-iam à sua comitiva três padres franciscanos desgostados com a atmosfera inóspita criada em seu redor, pois era a China considerada domínio jesuíta. Não deixa de ser irónico o facto de um deles, Martin Inácio de Loyola, que tinha ao seu encargo um jovem japonês convertido ao Catolicismo, ser sobrinho de Inácio de Loyosla, fundador da Companhia de Jesus. Os outros frades eram de nacionalidade portuguesa; Francisco Nogueira o nome de um deles. Marinheiros-soldado e nativos de Luzon compunham a tripulação.
Uma vez mais foram as mãos experientes de Alonso Gomez que a 12 de Julho de 1587 os levou de Macau à costa da Califórnia. A 18 de Outubro desembarcavam numa praia (talvez a actual baía de Morro), 35,5 graus de Latitude Norte, entrando em contacto com os locais. Progrediria a cabotagem até à baía de Acapulco e, à chegada, a 22 de Novembro, frei Martín, valendo-se do estatuto religioso, declararia por sua honra, junto das autoridades locais, serem as mercadorias pertença de um português de Macau (um dos passageiros) e do neófito japonês.
Encontrar as míticas ilhas Rica de Oro, Rica de Plata e Armenia (que Unamuno provou não existirem) era outro dos objectivos da jornada, além, claro, da lucrativa venda na Nova Espanha dos lucrativos produtos chineses. O galeão comercial oficial de Manila, o Santa Ana, chegaria à costa californiana um mês depois do Nuestra Señora de Buena Esperanza; e não podia ter sido em pior altura pois seria capturado e saqueado pelo pirata inglês Thomas Cavendish.
Joaquim Magalhães de Castro