IGREJA MATRIZ DE MIRA É DEDICADA A SÃO TOMÉ

IGREJA MATRIZ DE MIRA É DEDICADA A SÃO TOMÉ

Ver para crer

Enquanto vos escrevo estas linhas, em Portugal volta a ser ponderado implementar medidas mais austeras de combate à pandemia, pelo que ficar dentro de portas, isto é, em casa, torna-se cada vez mais a melhor opção. No nosso caso, habituados a andar com a casa às costas, seja de barco, de autocaravana ou com o negócio ambulante que criámos, a ideia não nos agrada de forma alguma. Quem nos tira as viagens e tudo o que se aprende com elas, é como se nos tirasse parte da alma. Estar no mesmo local mais de uma semana torna-se um pesadelo, que se repete em todas as formas de uma vida em comum.

Posto isto, como as restrições impostas não nos impedem de sair de casa (ainda!), temos a felicidade de viver na província. O que por si nos dá acesso a ar livre – a campos, lagos e a um mar imenso, devido a estarmos próximos do oceano, o qual é parte da nossa história familiar e da memória colectiva deste povo.

A vila onde nasci e onde agora vivemos, embora as nossas estadias sejam sempre curtas, está plantada à beira-mar, vivendo em estreita ligação com o mesmo; seja nas tradições, nas crenças, na forma de falar e até na prática religiosa.

Hoje em dia a realidade é outra, mas em certos aspectos – como acontece com a religião – tudo está relacionado com o mar. Na praia há dois templos católicos: uma igreja construída nos anos noventa e uma capela em madeira que data de meados do Século XIX (Capela de Nossa Senhora da Conceição), sobre a qual vos irei falar noutra ocasião.

Na Vila de Mira há uma igreja matriz. À semelhança de todas as igrejas matrizes, ergue-se orgulhosa na zona nobre da localidade, sendo (ou foi) um pólo aglutinador de gerações há vários séculos. Foi ali que andei na Catequese e recebi a Primeira Comunhão. Ainda me lembro de ser uma guerra para me obrigarem a ficar na missa, quando no adro da igreja estava o ti Aplino (famosa figura da memória colectiva mirense) a vender todo o tipo de guloseimas.

A Igreja Matriz de Mira, construção mandada edificar pelo bispo João de Melo, em 1688, sempre foi, e ainda continua a ser, uma das atracções desta humilde vila e o orgulho dos filhos da terra. Simples, austera, mas de uma beleza difícil de explicar a quem ali não vive. Dois séculos depois da sua construção foi totalmente remodelada, assumindo a fisionomia actual, mesmo após outras duas intervenções já no Século XX (1972 e 1981).

Na inscrição sobre a porta de entrada pode ler-se: ESTA IGREIA / FOI FVNDADA / NA ERA DE 1690.

De acordo com os especialistas na matéria, trata-se de um edifício de traça típica dos templos de província de 1600; planta simples em forma rectangular e decorada com uns bonitos azulejos ao estilo rococó. Aliás, os azulejos da Igreja Matriz, a par com os do edifício dos Paços do Concelho (actual Câmara Municipal), eram romaria obrigatória de todos os estudantes do Secundário durante as aulas de Educação Visual. Ainda me lembro de passar diversas tardes, sentado no chão, a olhar para a imensidão azul e branca, muito desbotada, e a tentar reproduzi-la nas folhas de papel cavalinho.

E se os seus azulejos cativam quem gosta destas coisas, o tecto da igreja, certamente, cativa todos quantos a visitam. Retábulos que marcam a transição entre os Séculos XVII e XVIII.

A Vila de Mira tem uma história bem mais antiga do que a Igreja Matriz. A sua origem é atribuída aos romanos e considera-se que a sua toponímia se deve à passagem dos árabes, pelo que os historiadores locais defendem que o nome “Mira” deriva da palavra árabe “Emir” (Senhor).

O foral, assinado por Dom Manuel I, eleva-a a vila a 27 de Agosto de 1514, mas já em 12 de Julho de 1448 o Rei D. Pedro (o dos Descobrimentos) lhe atribuíra autonomia judicial e administrativa, em relação a Coimbra, que ainda hoje é a capital de distrito.

A igreja de São Tomé (não poderia ser outro o padroeiro, não fosse esta uma vila de mar), ou Igreja Matriz de Mira, denota uma austeridade que contrasta com o interior, cuja decoração foi progressivamente enriquecida através de retábulos de talha dourada e de inúmeras imagens de diferentes épocas. O interior, de nave única, apresenta dois altares laterais e igual número de capelas. Os retábulos destas são igualmente de talha dourada.

Apesar do orago (protector, santo) do templo não se encontrar representado nos azulejos, há uma estátua muito curiosa do mesmo. Trata-se de uma representação imaginária (escultura do Século XV) do santo vestido de apóstolo. De facto, Tomé era um pescador da Galileia que se tornou discípulo de Jesus, sendo habitualmente recordado pela incredulidade que manifestou sobre a Ressurreição de Cristo, mas nesta sua igreja aparece representado e vestido de apóstolo.

Garantimos que não é uma visita em vão, porque embora a igreja pareça pouco atractiva tem pormenores que merecem ser explorados e entendidos através de uma observação minuciosa. Pessoalmente, gosto de lá ir, principalmente quando está vazia, e sentir a paz e serenidade que o lugar nos empresta; duas condições essenciais para que possamos contemplar a vida, num mundo cada vez mais agitado.

Infelizmente, apesar de passar à porta da igreja todos os dias, entro muito poucas vezes. Quando o faço, fico sempre com a sensação que o deveria fazer mais vezes.

João Santos Gomes

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