HISTÓRIA E ACTUALIDADE DA VIA-SACRA

HISTÓRIA E ACTUALIDADE DA VIA-SACRA

Caminho traçado pelo Espírito Santo

Desde os primeiros séculos, os peregrinos que iam até Jerusalém queriam passar pelo caminho doloroso do seu Salvador, desde o Jardim das Oliveiras, passando pelo palácio de Pilatos até ao Gólgota e ao Santo Sepulcro. Caminho ou via que se tornara sacra porque pisada por Aquele cujo amor foi assim manifestado.

Desde o século VII até ao século I a.C. foi utilizado como pedreira e depois como jardim e lugar de sepulturas o local onde se dava a pena maior da crucificação aos condenados do Império em Jerusalém.

Crucificado e sepultado, de onde, acreditamos, ressuscitou glorioso o Senhor Jesus, no Gólgota ou Monte Calvário, esse espaço passou a ser de imediato usado pela Igreja nascente com bispo referido como São Tiago, o Justo, “irmão do Senhor”, e até ao ano 135 a Igreja de Jerusalém usa o espaço.

No ano 135, o imperador Adriano manda nivelar os lugares santos e aterrar para construção da “Aelia Capitolina”, cidade de estilo romano dedicada a Júpiter.

Em 313, o imperador do Ocidente Constantino e Licínio, imperador do Oriente, publicam um édito que concede a liberdade religiosa em todo o Império e, oito anos mais tarde, Constantino assume o Cristianismo como religião do Império.

Só no ano 326, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, descobre a Cruz e são postos a descoberto os lugares santos. E o próprio imperador manda construir um enorme complexo com átrio oriental, “martyrium” (basílica de cinco naves), tripórtico com Calvário a descoberto, “anástasis” (com o túmulo da Ressurreição) e a casa patriarcal, cuja dedicação acontece em 13 de Setembro de 335. A Cruz é exposta à veneração, coberta de ouro e pedras preciosas, no dia seguinte, 14 de Setembro, dia em que se celebra a Exaltação da Santa Cruz.

Interessante é o testemunho do peregrino anónimo de Bordéus (333) que, em Jerusalém, descreve os lugares santos; e sobre o lugar do Sepulcro ainda existem elementos da cidade romana dedicada a Júpiter. Ou a peregrina Egéria, ou Etéria, natural da Galiza (ou Braga), sendo a mais célebre peregrina da Terra Santa, percorre todos os lugares santos (entre 381-384) e descreve-os, bem como as celebrações de Jerusalém. São Jerónimo (347-420), Santa Paula (347-404) ou Santa Eustóquia (389-419) fixam-se nas grutas de Belém, cujas marcas ainda são visíveis, e muitos outros peregrinam aos lugares santos.

Vai-se assistindo por todo o Império Cristão, no final do século IV e início do século V, a um crescendo do ideal de peregrinação à Terra Santa e aos locais dos mártires por devoção ou por penitência. Contudo, alguns Padres da Igreja insurgem-se contra as peregrinações à Terra Santa, dizendo que o Senhor Jesus que querem encontrar nos lugares da Terra Santa é o mesmo que encontram na sua terra nos sacramentos. A última descrição antes da conquista islâmica é do Anónimo de Placência (570).

OS LUGARES SANTOS

Em 637, o califa Omar com as suas tropas conquista Jerusalém, embora consinta a coexistência dos cristãos e dos seus lugares. Por isso, a mesquita diante do Santo Sepulcro é a mesquita de Omar.

Contudo, em 1009 dá-se a destruição de Jerusalém, que levará ao ideal da reconquista e das Cruzadas, que ocorreram entre 1095 e 1291. O último reduto cristão foi a fortaleza de São João de Acre, Acco, sobretudo depois do impulso de Saladino, que entrou na Cidade Santa em 4 de Julho de 1187.

Em 1217, no Capítulo Geral da Ordem dos Frades Menores, vulgo franciscanos, criam-se províncias e, entre elas, a província da Terra Santa com sede em Chipre, onde estavam, estendendo-se até ao Egipto e, como se dizia, Cisjordânia e Transjordânia.

Peregrino da Terra Santa entre 1219 e 1220, São Francisco de Assis percorre o Egipto, a Síria e a Palestina. Encontra-se em Damieta, Egipto, com o sultão Melek El-Kamel, enfrentando o exército sozinho e ganhando a benevolência do sultão.

Os franciscanos, em 1263, dividem a província da Terra Santa em custódias e cria-se a custódia da Terra Santa, já há vários anos com presença permanente de frades nos lugares santos para os cuidar, auxiliar em ambiente de Cruzadas e no acolhimento de peregrinos.

Só em 21 de Novembro de 1342, em Avinhão, aparece a Constituição oficial da Custódia da Terra Santa por bula de Clemente VI.

Nos séculos XIV-XV, a Europa católica utiliza a imagem, sobretudo pintada, e a descrição para, na boa tradição da “Bíblia dos pobres”, dar a conhecer, a quem não sabe ler, a vida e a Paixão de Jesus e a vida dos santos. Vivia-se um desejo íntimo e não poucas vezes intimista da religião cujo exemplo maior pode ser “A Imitação de Cristo”.

Durante o século XV, os franciscanos, guardiões dos santos locais de Jerusalém, trouxeram para a Europa as figuras da Paixão do Senhor. Os cristãos passavam por essa “Via Crucis” como se estivessem seguindo Jesus nas ruas de Jerusalém, parando em cada estação para O invocar e para rezar.

No século XVII, o Papa Inocêncio XI (1676-1689) concede indulgências já dadas em Jerusalém agora também nas igrejas dos franciscanos a quem rezar a Via-Sacra. O Papa Clemente XII (1730-1740), em 1731, fixa o número de catorze estações, quando já muitas igrejas querem ter pinturas sobre a Via-Sacra.

São Luís-Maria Grignion de Montfort (França, 1673-1716) construiu, no século XVIII, com quinhentos moradores do vilarejo, um grandíssimo Calvário em Pont-Château. Mas foi o missionário italiano São Leonardo de Porto Maurício (1676-1751) quem tornou conhecido esse exercício espiritual da Via-Sacra durante a primeira parte do século XVIII. Ele mesmo abençoou 572 Vias-Sacras. Ergueu uma série monumental de quinze estações (a última era “as dores de Maria”) no Coliseu em Roma.

A Via-Sacra também é um exercício paroquial. São Leonardo pede aos bispos e párocos: “Eu imploro-vos, pelos sentimentos de Jesus Cristo, abram aos fiéis o tesouro onde eles acharão o começo da sua conversão, fonte inesgotável de graças, méritos e bênçãos celestes. Se Deus é severo para com o servo que escondeu um talento recebido, tanto mais será para com quem esconde do seu povo um tesouro que tem tantos talentos, cujo preço é ilimitado”.

Assim se percebe que este exercício de piedade tenha proliferado, sobretudo nas tradições locais onde a influencia da pregação e do apostolado franciscano se foi sentindo ao longo do tempo, ou de outras congregações que foram aparecendo com a missão de fomentar a devoção à Paixão do Senhor.

A VIA-SACRA HOJE

No “Directório sobre a Piedade Popular e a Liturgia”, nº 133, afirma-se: “A Via-Sacra é um caminho traçado pelo Espírito Santo, fogo divino que ardia no peito de Cristo e o impelia para o Calvário; e é um caminho amado pela Igreja, que conservou memória viva das palavras e dos acontecimentos dos últimos dias do seu Esposo e Senhor. No exercício da Via-Sacra confluem também várias características da espiritualidade cristã: a concepção da vida como caminhada ou peregrinação; como passagem, através do mistério da Cruz, do exílio terreno à pátria celeste; o desejo de se conformar profundamente com a Paixão de Cristo; as exigências da ‘sequela Christi’, pela qual o discípulo deve caminhar atrás do Mestre, levando diariamente a sua cruz”.

A Encarnação e a Redenção estão unidas no único mistério do amor de Deus que quis descer a nós dada a nossa impossibilidade de subir até Ele. E este mistério repropõe continuamente um aqui e agora que a liturgia sintetiza continuamente no Hoje.

Este realismo concreto de um Deus presente na História dos Homens faz-nos olhar a Aliança de Deus com a Humanidade e dos Homens com Deus não simplesmente como uma História da Salvação, mas também como uma Geografia da Salvação, concebendo o espaço físico da manifestação do Filho de Deus como o Quinto Evangelho.

Percorrer as estações da Via-Sacra remete-nos para um acontecimento fundante: a Paixão, Morte e Sepultura do Senhor, como meio seu escolhido para alcançar a Ressurreição e na sua vitória oferecer-nos a sua Vida Eterna. Com outras ruas, outros lugares, outros rostos, reconhecemos que a Paixão do Senhor permanece no seu Corpo dizendo como São Paulo: «Completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo que é a Igreja» (CL., 1,24).

Pois cada Via-Sacra, textos bíblicos propostos, contemplações, preces e orações colocam diante de nós a Encarnação e a Redenção: a Encarnação pela descrição que nos transporta para Jerusalém, um concreto espaço, escolhido por Deus, em Cristo, para dar a sua vida e tomar parte nunca como mero espectador, ou para reconhecer a Paixão de Cristo continuada na vida dos seus membros na Igreja.

Redenção, porque acompanhando e contemplando cada estação da Via-Sacra se vai abrindo o sentido e a vontade do Senhor Jesus à interrogação de quem O procura. Para chegar a sentir-se parte daquele acontecimento, ter experimentado a proximidade, o olhar e a ternura e saber-se responsabilizado em relação ao que fazer agora, na vida concreta, nos encontros e desencontros nossos, com a Palavra acolhida e que tem de se tornar visível na vida dos que a Cristo pertencem.

PE. RICARDO JACINTO 

 Sacerdote do Patriarcado de Lisboa

In Família Cristã

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