História, Conhecimento, Ciência

O Arquivo Secreto Vaticano

Durante vários anos da minha vida passei grande parte desse tempo em Roma, no Arquivo Secreto Vaticano, como na vizinha Biblioteca Apostólica. Em pleno coração do Estado do Vaticano. Ali, junto à Capela Sistina, aos Museus Vaticanos, estava eu e tantos outros leigos, mas também clérigos, religiosos, estudando, trabalhando. Ora por doutoramentos, como eu, ora por outras razões, um sem número de investigadores acorre livremente àquelas venerandas instituições de cultura e ciência que a Santa Sé coloca ao dispor da investigação. Como em qualquer arquivo do mundo, ou biblioteca, apenas pede os requisitos mínimos: uma carta a solicitar acesso aos fundos e livros, confirmando-se que se é investigador ou se está a fazer investigação. Dentro do que o Regulamento do Arquivo permite, naturalmente, e dos princípios básicos da arquivística e consulta de documentos.
Como acontece em qualquer arquivo no mundo, na Torre do Tombo, em Lisboa, por exemplo. Posso até dizer, com a experiência de inúmeros arquivos, públicos e privados, por todo o mundo, em mais de vinte anos de investigação, que o Arquivo Secreto Vaticano foi dos de mais fácil acesso e trabalho, como muitos colegas e amigos mo demonstraram também nas suas jornadas de pesquisa. Já passei trabalhos e impaciências em arquivos pequenos, ditos de “província”, por nada. Ali, no Vaticano, todavia, guardo uma saudade especial daqueles anos ali passados. Um lugar diferente, uma instituição com as próprias particularidades, no seio da Igreja Católica Apostólica Romana, como outras instituições. Mas plural, universal, não estando reservada somente a investigadores católicos ou a membros do clero, pois a maior parte dos seus utentes são leigos, de várias nacionalidades, credos ou sem credo.

Secreto? Secreto, do Latim secretum, significa “privado”, do Papa, que detém a suprema e exclusiva jurisdição. Mas não é misterioso, secreto ou desconhecido, fechado ou fantasmagórico, nem encerra segredos malignos ou brutais. Os arquivos nacionais de muitos países onde vigoraram regimes totalitários no passado serão porventura maiores repositórios de documentação mais sensível do que a que o Arquivo Secreto Vaticano custódia e abre aos investigadores. A mitologia literária e cinematográfica tem criado, todavia, uma aura de mistério e enigma em torno deste arquivo, fazendo do mesmo quase como que uma cripta ou câmara de terríveis segredos. Nada disso, estamos perante um arquivo central de toda a documentação produzida pela Santa Sé, em termos de administração, actos, correspondência, processos judiciais e documentos de diversa natureza relacionados com o Vaticano em si e das suas relações institucionais e internacionais. Compreende doze séculos de património documental (séculos VIII-XX), em 650 fundos arquivísticos distribuídos por cerca de 85 kms de estantes, muitos deles no subterrâneo (“bunker”) de dois pisos, sob o Cortile (pátio) della Pigna (Museus Vaticanos). Os fundos dividem-se nas seguintes categorias: “Uffici della Curia” (instituições da Sé Apostólica, como a Chancelaria, a Câmara Apostólica, etc., e da Cúria (Secretaria de Estado, Congregações, Tribunais, etc); Representações Pontifícias (diplomacia da Santa Sé); Famílias e Pessoas Singulares; Concílios e Sínodos; Ordens, Institutos Religiosos, Arquiconfrarias; “Raccolte Miscellanee” (documentos de proveniência diversa, miscelânea). São milhões de documentos, dos quais mais de 30 mil pergaminhos. Grande parte desta documentação está digitalizada ou microfilmada, ou em vias de o ser.

O Arquivo Secreto Vaticano foi fundado em 1612 a 31 de Janeiro, por ordem do Papa Paulo V (1605-21), para custódia da documentação manuscrita existente na Biblioteca Apostólica, ficando como uma espécie de “departamento” desta. Entre 1810 e 1817, os seus fundos foram para Paris, a ordens de Napoleão, regressando e definitivo naquele último ano aos Palácios Vaticanos. Em 1881, o Papa Leão XIII (1878-1903) decretou a abertura das portas do Arquivo aos estudiosos de quaisquer países ou religiões, aprovando três anos depois o seu Regulamento, fazendo da instituição um dos centros de investigação histórica mais importantes do mundo. O famoso “bunker” seria, entretanto, inaugurado em 1980 pelo Papa S. João Paulo II (1978-2005), com 31 mil metros cúbicos de capacidade e 43 km lineares de estantes. Desde 1924, por ordem do Papa Pio XI (1922-39), vigora o livre acesso aos documentos “por pontificado”. Assim, o limite cronológico de consultas é precisamente a data de falecimento daquele pontífice, ou seja, Fevereiro de 1939. Como todos os arquivos históricos do mundo, existe um limite no período cronológico de consultas, para mais num arquivo que necessita de processar e classificar incorporações documentais sucessivas, pois todos os anos se deposita nova documentação, além de que, por exemplo, as nunciaturas apostólicas da Santa Sé (embaixadas) em todo mundo enviam a cada 35 anos toda a sua documentação. Um acervo dinâmico e sempre com trabalho adicional, ao contrário da maior estabilidade da Biblioteca Apostólica. Os 54 funcionários do Arquivo não conseguem pois ter mãos a medir, além do atendimento ao público e outras funções. A “Secretaria”(daí também o “Secreto”) de S. João Paulo II, por exemplo, em trabalho de classificação, conta 15 mil envelopes (pastas), com uma média de 500 páginas cada, isto é, 15 milhões de páginas, para abrir, carimbar, guardar, conservar e catalogar…

Apesar do limite cronológico, que em breve será alterado e actualizado, os Papas posteriores a Pio XI permitiram acesso a vários fundos, como o Arquivo do Concílio Vaticano II (1962-65), ou o Ufficio Informazioni Vaticano, Prigioneri di Guerra (1939-47), relacionado com a Segunda Guerra Mundial e prisioneiros de guerra, entre outros. O Arquivo Secreto Vaticano desenvolve-se em duas vertentes principais: a tutela do património documental da Igreja (a par da sua conservação e salvaguarda da sua integridade); e a sua valorização enquanto memória histórica da actividade da mesma, criando instrumentos de investigação para os estudiosos. É um Dicastério da Igreja, dirigido por um Arquivista, também Bibliotecário (actualmente o Arcebispo D. Jean-Louis Bruguès, OP), um Prefeito (D. Sérgio Pagano, B) e um Vice-Prefeito (Prof. Paolo Cherubini, leigo), além de um secretário-geral, e demais funcionários.

Processos dos Templários, de Galileu, da Inquisição, por exemplo, tratados como Tordesilhas, milhares de bulas, a passarola do P. Bartolomeu de Gusmão, tantos são os documentos deste arquivo, instituição notável de cultura e ciência, alfobre de conhecimento, num espaço tão belo e singular…

Vítor Teixeira

Universidade de São José

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