Adão no Jardim
Creio que todos nós estamos muito familiarizados com a forma como, segundo Génesis 2, foi formado o primeiro ser humano: «o Senhor Deus formou o homem do pó da terra» (versículo 7a’). O material que forma “o homem”, “hāʾādām”, em Hebraico, é o pó da terra. O Hebraico de “a terra” neste versículo é “ʾădāmâ”, que significa “solo arável, terra (do campo)”. No entanto, há algo que muitos de nós podem ter perdido, nomeadamente que a sequência da criação em Génesis 2 não é a mesma de Génesis 1. Em Génesis 1, os seres humanos são os últimos a serem criados, pelo menos no mundo material, visível; mas em Génesis 2 o homem é o primeiro a ser criado.
Certamente, como todos sabemos tão bem, de acordo com Génesis 2 existe uma diferença absoluta entre os seres humanos e os outros seres vivos. Mesmo que as árvores sejam feitas crescer “fora da terra” por Deus (cf. versículo 9), todos os animais e aves são também formados por Deus “fora da terra” (cf. versículo 19). Deus faz algo ao homem logo após a sua formação a partir do pó da terra. Ele «sopra nas suas narinas o sopro da vida» (versículo 7a’’).
Mesmo que no Jardim do Éden o seu corpo tenha sido formado a partir do pó do chão e do sopro da vida que lhe foi dado, não deixa de nos surpreender que a existência do homem esteja relacionada com mais algo, ou seja, com trabalho – mais precisamente, com o trabalho de parto. De facto, no início da História da Criação, em Génesis 2, o narrador deixa bem claro: «Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, não havia arbusto do campo na terra e nenhuma erva do campo tinha brotado, pois o Senhor Deus não tinha enviado chuva sobre a terra e não havia homem para cultivar a terra» (versículos 4b-5). Claramente, mesmo antes de criar o homem, o Senhor Deus já tinha na sua mente a intenção de que ele teria que trabalhar. E acontece que é precisamente esse o caso. Depois de formar o homem, o Senhor Deus faz com que no solo cresçam árvores para alimento e rios para regar esse mesmo solo; e então Ele «tomou o homem e instalou-o no jardim do Éden, para o cultivar e cuidar dele» (versículo 15). Embora a tarefa do homem de “servir” o jardim possa não ser algo tão miserável como ser seu escravo, devemos estar cientes de que logo após a sua criação, mesmo quando no paraíso, o homem teve de trabalhar – de trabalhar imediatamente.
Neste ponto, o homem pode duvidar: “Este jardim não é o paraíso? Como pode ser um paraíso, se o homem é obrigado a trabalhar?” Podemos deduzir a resposta a estas perguntas a partir do desdobramento da história em Génesis 2-3. Depois do homem e da mulher transgredirem a proibição do Senhor Deus, ao comerem da árvore do conhecimento do bem e do mal, o Senhor Deus diz ao homem: «Na labuta comerás o seu rendimento durante todos os dias da tua vida. Espinhos e cardos que ele suportará para ti, e comerás a erva do campo». «Pelo suor da tua fronte comerás o pão» (3, 17c-19a). Simplificando, depois de ter sido expulso do Jardim, mesmo depois dos seres humanos se tornarem “escravos” da terra, não havia garantia de que a terra cedesse tanto como o esforço que os seres humanos nela investiriam. Muito frequentemente, depois de lavrar o solo, semear as sementes e fertilizar o solo – mesmo quando o solo recebe alguma cultura –, o esforço que os seres humanos investem nele pode também fazer crescer a erva daninha, e sejam obrigados a defenderem as culturas para garantirem a sua nutrição. Simplificando, o trabalho fora da horta é caracterizado pelo desencontro entre o esforço e a colheita. É bastante certo que o esforço que se tem de fazer é desproporcionalmente maior do que os ganhos que se obtêm com a colheita. Pelo contrário, a mão-de-obra dentro do paraíso garante a colheita, e é sempre proporcional. Se se investir cem por cento de esforço, obtém-se definitivamente um rendimento de cem por cento.
Talvez seja isto que faz do Jardim do Éden o paraíso. O trabalho, por si só, torna os seres humanos felizes ou, mais precisamente, satisfeitos. No entanto, neste mundo cheio de fraquezas e limitações humanas, tanto no trabalho como na vida, as coisas nem sempre correm como desejamos, e por vezes temos de fazer coisas que não queremos. Também não é raro que as pessoas possam obter metade do resultado com o dobro do esforço, e não é raro de todo que todo o esforço seja em vão. Por vezes, outras pessoas roubam o crédito pelo nosso esforço; e outras vezes somos feitos bode expiatório por culpa de outrem. São todos estes problemas surgidos no trabalho que transformam o trabalho em fadiga, que fazem sentirmos o trabalho como sendo uma tortura. E esta é talvez uma das coisas que a Humanidade perdeu com a queda de Adão.
Depois de falarmos do corpo, do sopro da vida e da missão de trabalhar, há mais algo na vida humana, pelo menos de acordo com Génesis 2. Disso falaremos no nosso próximo encontro.
Andrew Leong
Universidade de São José