Ameaça fugaz, problema duradouro
A 29 de Junho de 2014, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante proclamou a existência de um califado mundial sob a sua liderança. Quer isto dizer que, para este grupo extremista, todos os muçulmanos, em todo o mundo, lhe devem obediência – isto apesar de ele apenas controlar parte do Iraque e da Síria. Com dezenas de países a combatê-lo, o Estado Islâmico jamais conseguirá subjugar o Islão, mas exterminá-lo também será muito difícil.
Primeiro, o Iraque. Logo a seguir, a Síria. Em pouco mais de um ano, um grupo extremista islâmico que se pensava estar quase desmantelado conquistou boa parte destes dois países e, agora, proclama o seu domínio (fictício, até ver) sobre toda a comunidade islâmica mundial, a “Ummah”.
Como foi possível? O que possibilitou que o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, também conhecido por Estado Islâmico do Iraque e da Síria, se tornasse numa força relevante no panorama internacional, levando os Estados Unidos e dezenas de outros países a coligarem-se para o derrotar?
Grande parte da resposta está, como não poderia deixar de ser, na fraqueza dos Estados iraquiano e sírio.
As dissensões internas e a incapacidade do Governo de Bagdade em agir como um órgão verdadeiramente nacional, em vez de mero protector dos interesses da população xiita, empurraram os sunitas do Iraque para os braços dos mesmos extremistas que tinham rejeitado em 2008, ainda durante a ocupação norte-americana, devido aos seus métodos demasiado brutais.
Falamos da organização que foi primeiro conhecida como Al-Qaeda no Iraque, e que depois se transformou no Estado Islâmico do Iraque.
Na Síria, foi a brutalidade do Governo secular do Presidente Assad que criou as condições para o florescimento da rebelião. Na sequência da Primavera Árabe, milhares de sírios vieram para as ruas exigir mais liberdade e menos repressão, mas receberam em troca o chumbo das espingardas e dos canhões do Exército.
A revolta começou, e inicialmente nem sequer tinha um cariz religioso muito marcado, com muitos rebeldes a lutarem pela instauração de um regime democrático de estilo ocidental, ou algo parecido. A pouco e pouco, contudo, a religião começa a dominar todos os cálculos.
Com a população síria dividida por vários grupos religiosos (xiitas, sunitas, alauítas, cristãos, etc.), também a rebelião se fraccionou de acordo com esse critério. A força mais forte e determinada a emergir, já em 2013, foi o Estado Islâmico do Iraque, que, sob o comando de Abu Bakr Al-Baghdadi, percebeu rapidamente que a guerra civil Síria constituía uma oportunidade de ouro para alargar o seu território e a sua base de apoio.
Aproveitando o facto de os Governos sírio e iraquiano não terem qualquer controlo efectivo da sua longa fronteira comum, o grupo colocou dezenas de milhares de combatentes no leste da Síria, muitos dos quais recrutados na Europa (ver caixa) e em muitos países islâmicos.
Essas forças têm travado uma guerra sem quartel, e bem sucedida, não só contra o exército de Assad como também contra os outros grupos rebeldes que não aceitem a imposição estrita da sharia, a lei islâmica.
Ciente da sua força, o Estado Islâmico alargou as suas ambições. Cortou os seus laços com a Al-Qaeda, por não querer permanecer subordinado a esta, e passou a designar-se Estado Islâmico do Iraque e do Levante, o que reflecte a sua ambição de controlar o território do antigo califado, que desapareceu após a Primeira Guerra Mundial, quando a Turquia foi fundada sobre as ruínas do Império Otomano.
Em última análise, o califado inclui todos os territórios que alguma vezes tiveram sob domínio muçulmano – Portugal incluído – mas, apesar de algumas proclamações propagandísticas nesse sentido, as ambições reais do grupo são mais modestas: controlar a Síria, o Iraque, o Líbano, a Jordânia, Israel, Chipre e parte da Turquia, o que, convenhamos, já é irrealista quanto baste.
Mesmo assim, o Estado Islâmico não deve ser subestimado. Nesta altura, controla uma grande parcela da Síria, embora não pareça possível que, só por si, consiga tomar conta de todo o País. O mesmo acontece no Iraque, onde chegou às portas da capital, Bagdade, mas dificilmente irá mais longe, porque os Estados Unidos estão determinados em não deixar o Governo cair e os xiitas dominam completamente o sul do País com o apoio do Irão.
Nas zonas que ocupa, a organização tem imposto os preceitos extremistas com grande ferocidade, recorrendo à tortura, ao massacre e às execuções públicas com enorme frequência. Alguns ocidentais que têm caído nas mãos do grupo e dos seus aliados têm sido as vítimas mais visíveis dessa barbaridade. A divulgação na Internet de vídeos mostrando a decapitação de várias pessoas, entre as quais alguns jornalistas, mobilizou Governos e a opinião pública internacional contra os terroristas.
Aí, o Estado Islâmico torna-se vítima da sua própria crueldade. Os seus actos mais extremistas repelem mais pessoas do que aquelas que atraem, o que lhes rouba o apoio essencial das populações locais. Isso mesmo já tinha ficado demonstrado no Iraque, durante a ocupação norte-americana, quando as tribos sunitas, fartas das matanças do grupo, decidiram aliar-se aos Estados Unidos para derrotar os seus antigos aliados.
Ao atrair a ira ocidental com o assassínio de civis, sejam eles europeus, norte-americanos, sírios ou iraquianos, o Estado Islâmico está a desperdiçar a lição que lhe foi dada no Iraque a partir de 2008. Por agora, a coligação que se formou para o derrotar está apenas disposta a fazer ataques aéreos e a enviar ajuda aos seus inimigos, mas isso pode mudar depressa. Além disso, os bombardeamentos, embora insuficientes para destruir o Estado Islâmico, são certamente suficientes para o conter e enfraquecer.
É isso, certamente, que vai acontecer nos próximos meses, mas, mesmo que o Estado Islâmico deixe de ser a ameaça séria que agora aparenta ser, o extremismo islâmico não desaparecerá com ele. Outros “corpos”, com outros nomes, aparecerão para albergar esse vírus religioso e ideológico.
CAIXA
Os portugueses no Estado Islâmico
Tanto quanto é possível apurar, há mais de vinte portugueses nas fileiras do Estado Islâmico. Todos eles seriam emigrantes na Grã-Bretanha ou noutros países europeus, e foi aí que se converteram ao islamismo e, depois, ao fundamentalismo.
A possibilidade de fazer a Jiad (Guerra Santa) contra os supostos inimigos do Islão atraiu-os à Síria. Em alguns casos, foram acompanhados pelas suas mulheres, também elas crentes da mesma corrente religiosa.
Até agora, dois portugueses morreram em acção pelo Estado Islâmico: o primeiro, num ataque suicida, em Bagdade, no Iraque, em Maio de 2014; o segundo, vítima de um ataque aéreo de aviões da coligação que combate o Estado Islâmico na Síria.
Rolando Santos
Família Cristã