ESPIRITUALIDADE PARA O TERCEIRO MILÉNIO – 2

ESPIRITUALIDADE PARA O TERCEIRO MILÉNIO

Quatro características

A espiritualidade cristã contemporânea tenta evitar dois extremos: o “espiritualismo” (a fuga mundi: individualista e escapista, e o contemptus mundi: a fuga e o desprezo pelo mundo); e o “activismo” (promoção humana e social desligada de oração e contemplação). Por outras palavras, a espiritualidade autêntica tenta evitar uma vida espiritual escapista (fuga da realidade) e hipócrita, e um activismo mundano sobrelotado com actividades sociais externas.

Muitos cristãos, assim como outros religiosos ou fiéis, procuram seriamente seguir o exemplo dos místicos, dos santos, dos bons cristãos, e quanto mais se unem a Deus na oração, mais se comprometem com o próximo, em particular com o vizinho pobre e ferido. Certamente, são os santos que renovam o mundo. Mahatma Gandhi afirmou, certa vez, que o “nosso mundo precisa de santos, não de políticos”.

A seguir, sugerimos quatro características que talvez devessem estar presentes em qualquer espiritualidade cristã do terceiro milénio: uma espiritualidade cristocêntrica, mística, libertadora e ecológica.

1-A espiritualidade cristã é cristocêntrica, totalmente focada em Jesus Cristo. Jesus é o único nome debaixo do céu que salva homens e mulheres (cf. Actos 4, 12). Tal é óbvio, mas deve sempre ser salientado: os cristãos são seguidores de Cristo. O foco central da teologia moral e da teologia espiritual é Cristo, o Caminho, a Verdade e a Vida (cf. João 14, 6), conforme revelado na Revelação. Cristo é “o coração” da vida cristã, da catequese e da evangelização (cf. docs. do Concílio Vaticano II). Portanto, o maior valor do Ser Humano é “a união com Cristo e em Cristo com o Pai e o Espírito Santo” (Marti). Jesus Cristo, o Filho de Deus e o homem perfeito, é quem nos revela o Pai no Espírito. Ele revela o homem a si mesmo e revela a todos a sublimidade da sua vocação. Cristo, «imagem do Deus invisível» (Colossenses 1, 15), revela à Humanidade a dignidade da pessoa humana, elevando assim a natureza humana à sua mais alta dignidade. Além disso, Cristo, ao morrer na cruz, revela às mulheres e aos homens a gravidade do pecado e a necessidade de um salvador. Cristo é o Redentor universal. “Nele não há Ocidente nem Oriente; nele não há Sul nem Norte. Mas uma grande comunhão de amor. Por toda a terra” (John Oxenham).

2-A verdadeira espiritualidade cristã é a espiritualidade mística. Há hoje um renascimento do misticismo e da atracção pela vida mística. Esta vida mística não é aristocrática e elitista, não é possível apenas – ao que parece – para almas extraordinárias. É uma vida mística acessível a todos os cristãos fiéis e também a outros crentes e pessoas de boa vontade. A vida mística é hoje entendida como união amorosa com Deus Pai através de Cristo, seu Filho unigénito, e pelo poder do Espírito Santo. Como deixou bem claro o Vaticano II, todos os cristãos são chamados à santidade, à união mística com Cristo, embora apenas alguns recebam graças especiais ou sinais extraordinários da vida mística que, afinal, não são de todo necessários – como os próprios místicos afirmam repetidamente.

Seguindo a tradição cristã, o misticismo é sempre precedido e acompanhado pelo ascetismo. Escreve Joseph Phan, OP: “O ascetismo e o misticismo estão tão misturados que nunca existe um estado puramente ascético ou um estado puramente místico”; “o ideal da vida mística exige a vida ascética mais exigente” (padre Aintero). O progresso espiritual implica ascetismo, mortificação e experiência do deserto. Estas levam gradualmente a abandonar o pecado, a viver virtuosamente, a testemunhar as bem-aventuranças e a abraçar – de uma forma cada vez mais profunda – a cruz da vida. Seguir o caminho da cruz que leva à perfeição é difícil, mas possível com a necessária graça infinita e sempre presente de Deus, e a nossa humilde e limitada cooperação livre.

3-A espiritualidade integral compreende uma dimensão transcendente e outra imanente; o amor a Deus e o amor ao próximo, a experiência mística e libertadora, a contemplação e a acção. Não é, como afirma Simon Chan, nem “uma interioridade a-histórica” nem “um envolvimento acrítico no histórico (mais frequentemente, sociopolítico)”. No entanto, um contexto cultural pode concentrar-se mais numa dimensão do que na outra. Por exemplo, a teologia filipina sublinha mais o seu aspecto libertador – a acção – enquanto outras culturas asiáticas centram-se mais na oração e na contemplação.

Não pode haver espiritualidade cristã autêntica sem uma profunda preocupação e compromisso com a justiça, uma justiça “informada” pela caridade, que é a forma de todas as virtudes, no sentido de que a caridade orienta todas as acções virtuosas para o fim último. Como é bem patente nas Sagradas Escrituras, não pode haver amor verdadeiro sem justiça. A caridade é o amor de Deus em nós e, portanto, à semelhança do amor de Deus, o nosso amor é dirigido principalmente aos pobres e necessitados. Neste contexto, os bispos asiáticos escreveram: “A busca da santidade e a busca da justiça, a evangelização e a promoção do verdadeiro desenvolvimento humano e da libertação, não se opõem, mas constituem hoje a pregação integral do Evangelho, especialmente na Ásia”. Palavras para reflectir: “No início do século, a questão que mais desafia a nossa consciência humana e cristã é a pobreza de incontáveis milhões de homens e mulheres” (São João Paulo II).

O contexto da libertação ultrapassa hoje o horizonte da teologia da libertação para envolver todos os grupos humanos que necessitam de libertar-se da opressão, da injustiça, da discriminação e da marginalização. Estes priorizam crianças, mulheres, idosos, migrantes e refugiados, entre outros. No encerramento do Concílio Vaticano II, a 8 de Dezembro de 1965, o Papa Paulo VI afirmou que o modelo da espiritualidade do Concílio era a história do Bom Samaritano. Já o Papa Francisco sublinha frequentemente a misericórdia ou a compaixão como a característica distintiva de Deus e do cristão autêntico (Misericordiae Vultus).

4-Sensibilidade e responsabilidade ecológica. No contexto global, o autor sublinha, tal como muitos outros, uma quarta preocupação para qualquer espiritualidade na actualidade: a teologia espiritual escuta os sinais dos tempos. Um sinal, ou um mensageiro da palavra de Deus, é, como o Papa Francisco deixa bem explícito na Encíclica Laudato Si’, a consciência e a responsabilidade ecológicas. Num mundo de abundância, muitos pobres e necessitados nem sequer participam dela. Na mesma encíclica ecológica, o Papa liga repetidamente “o grito da terra” com “o grito dos pobres”. Os gurus das alterações climáticas integrais também ligam os dois.

Uma vida mística, centrada na união amorosa com Deus e com o próximo, dialoga de forma respeitosa e cuida da natureza. A teologia espiritual autêntica também ajuda as pessoas a serem socialmente e ecologicamente responsáveis e, assim, a viverem uma verdadeira “espiritualidade cósmica”.

Pe. Fausto Gomez, OP

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