Quando a tradição é o que sempre foi
Recentemente encontrámo-nos com um casal amigo, que por acaso até é nosso cliente, e a conversa encaminhou-se para o Oriente. Macau, claro está, veio à baila! A mãe da senhora nasceu no antigo território português, tendo ela vivido alguns anos da sua infância em Macau, apesar de ter nascido em Portugal.
É um casal “bem viajado”, com alguma afinidade à cultura asiática, mas por incrível que pareça continua com a mente bem centrada em Portugal, pouco receptivo a experiências diferentes, à excepção da comida!
Embora tenha viajado intensamente no Oriente – nunca entrou na China continental – encara tudo o que é oriental como muito exótico, o que para nós é estranho, sendo a senhora filha de uma pessoa nascida em Macau e com alguns anos de vivência no antigo enclave.
A conversa andou sempre em redor da cultura – dos aspectos culturais que chocam com a noção ocidental do politicamente correcto, como acontece com os hábitos alimentares, em que na perspectiva de quem se centra no umbigo europeu são pouco higiénicos ou de qualidade nutritiva duvidosa.
Falámos também dos diferentes sistemas políticos vigentes na Ásia, não tendo faltado – como é óbvio – o Comunismo chinês e a sua aparente contradição com o modelo económico que tanto sucesso tem registado nas últimas décadas. E igualmente de democracias como a do Japão e dos provados fracassos democráticos de alguns países do Sudeste Asiático.
Não sendo nós muito dados a discussões de teor político, tentámos sempre centrar a conversa nos aspectos culturais, que sempre me atraíram muito mais do que trocas de argumentos de cariz político entre pessoas com experiências de vida completamente diferentes.
Entre todos os aspectos culturais, o do “valor da face” foi o que fez mais confusão aos nossos interlocutores. À luz dos conceitos ocidentais, pelos quais o casal se guia, ainda que já tenha experimentado várias vivências em países asiáticos e conte com amigos e mesmo familiares de etnias provenientes desta zona do globo, “perder a face” é algo que não consegue perceber, ou melhor, não consegue entender porque é que é tão importante para um asiático o facto de “não dar o braço a torcer” mesmo que não tenha razão.
Por mais que nós, enquanto casal, tenhamos tentado explicar que não se trata de teimosia ou de orgulho, mas sim de um princípio enraizado que leva a que a cultura e os relacionamentos sociais se rejam de forma a que conflitos de valores não sejam trazidos para a praça pública, ficaram praticamente na mesma. Tal incidente poderá suceder num encontro de amigos, num encontro familiar ou numa reunião de negócios. Na realidade, nunca vi acontecer, durante anos de reuniões de trabalho no Oriente, um chefe desmentir um subordinado em público, especialmente se estivessem presentes pessoas exteriores à organização. O oposto já vi acontecer, por diversas vezes, aqui em Portugal, nos últimos dois anos.
Para os nossos amigos esta é uma realidade estranha, pois segundo eles se algo está errado, deve ser corrigido. Não entendem qual o problema do chefe (enquanto superior hierárquico) corrigir o subordinado, se este estiver errado. Explicámos então que tal se deve ao facto do superior compreender que o subordinado irá “perder a face”, hipotecando qualquer hipótese de negociação em futuros encontros. O desmentido, ou confronto, é sempre feito à porta fechada e apenas entre o superior e o subordinado.
Tenho para mim que este é o modo acertado de resolver conflitos entre as partes. Nunca apoiei “lavar roupa suja” na rua, e se há conflitos devem ser resolvidos atrás de portas.
São estas e outras pequenas diferenças de comportamento que irão sempre pesar no relacionamento entre o Ocidente e o Oriente.
A par de “perder a face”, há outra característica que ainda hoje faz confusão a muitas pessoas que se relacionam com orientais. Há dias, durante um jantar em que participou um outro casal luso-tailandês, enquanto as senhoras aproveitavam para praticar a sua língua materna – ao viverem fora da Tailândia não falam tão frequentemente quanto desejariam –, os maridos foram falando disto e daquilo. Até que abordámos os conflitos culturais e, inevitavelmente, veio à conversa o facto dos asiáticos raramente dizerem “não”. A negação, associada seja ao que for, é extremamente difícil de arrancar de um asiático.
Aliás, em Macau, ainda é usual contar-se a anedota do português que foi à mercearia, ali para os lados do Lilau, comprar leite, a mando da sua mulher. Ao chegar à loja perguntou ao merceeiro, em Cantonense arranhado, se tinha leite. Ao que o senhor de idade avançada, com um sorriso na cara, lhe disse que sim. É claro que tinha leite, pois então! O português, com um peso tirado dos ombros, até porque o vendedor chinês o tinha compreendido, lá lhe disse que queria dois litros. O senhor merceeiro, muito pacientemente, explicou-lhe que tinha… mas no dia seguinte!
Ora, dizer “não”, ou neste caso admitir que não há leite para vender, não faz parte do léxico local, o que também se estende a outras etnias asiáticas.
Na Tailândia, por exemplo, se combinarem um encontro com amigos, seja para trabalhar ou para simplesmente comer e conviver, não esperem que todos apareçam. Assim como não esperem que os que não irão aparecer vos digam que não planeiam ir. Mesmo que lhes telefonem a confirmar, dificilmente lhes irão arrancar a confirmação da não comparência ao encontro. Quanto muito, dirão que aparecem mais tarde, ou que depois dizem alguma coisa…
Aprendi isto quando enviámos os convites do nosso casamento. A NaE avisou-me logo que não esperasse que quem não fosse ao casamento nos avisasse, pelo que os convites seriam uma perda de tempo, pois não iríamos conseguir saber quantos pessoas estariam presentes. Ao princípio este modo de funcionar fez-me alguma confusão, mas hoje, com a prática, já estou mais habituado a estas nuances. Trata-se de sociedades que estão escalonadas de um modo diferente ao que estamos habituados.
Para muitas pessoas tudo isto parece ser confuso e a primeira reacção é acusarem os outros de serem mal-educados. Aparentemente, à luz dos costumes ocidentais e dos conceitos que conhecemos desde nascença, pode não fazer sentido. Mas, à luz da tradição oriental e dos milenares conceitos sociais, faz todo o sentido.
O nosso amigo que é casado com a senhora tailandesa ainda hoje entra em conflito com a sua companheira por razões culturais. O lado bom é que, a pouco e pouco, vai aprendendo a viver com as diferenças. Ela, por seu lado, continua a tentar adaptar-se ao facto de ter de dar beijos na cara a toda a gente ou a apertar a mão a estranhos….
João Santos Gomes