Inútil para uns, útil para outros
Antes d’O CLARIMinterromper a sua publicação nas últimas duas semanas de Agosto – uma tradição herdada de tempos idos e que se mantém – deixámos aos leitores a sugestão de visitarem a Ria de Aveiro, em moldes bem diferentes dos habituais. Agora, no retorno à actividade jornalística, voltamos com a esperança de que os leitores tenham aproveitado para descansar e, acima de tudo, que tenham encontrado paz interior.
Estes tempos que atravessamos – de pandemia, tragédias humanitárias e calamidades naturais, entre outros incidentes que têm afectado o nosso planeta – exigem que todos reflictamos e nos esforcemos por um futuro melhor. Por aqui, diariamente, vamos fazendo o que está ao nosso alcance para ir influenciando (pela positiva) quem nos rodeia.
As últimas semanas foram aproveitadas, entre as pausas do trabalho, para realizarmos uma limpeza geral à casa dos meus pais. Um trabalho que ainda continua e parece não ter fim à vista!… Tal não foi o acumular de pertences adquiridos, que com o passar dos anos deixaram de fazer sentido e ficaram encostados a um canto, a juntar pó.
De entre muito que era lixo, por já não ter qualquer utilidade ou por ser mesmo inútil, muito havia que para outras pessoas podia e pode ser precioso. Fomos fazendo a triagem por secções, e como estamos a falar de uma propriedade que tem mais de cem metros de comprimento, com quartos, garagens, salas, cozinhas, casas-de-banho, arrecadações, oficinas, quintal e zona de criação de aves, havia muito por onde meter a mão. Aliás, encontrei dois armários que me foram oferecidos pelo amigo Luís Ortet. Enviei-os para Portugal, cheios de haveres de Macau, há mais de vinte anos.
Sorte a nossa que na vila onde vivemos existe uma associação que se dedica à reabilitação de pessoas com dependências e que vive, essencialmente, da boa vontade de terceiros e da casmurrice de quem a lidera. A fonte de financiamento mais usual a que o seu mentor recorre é juntar aquilo que os outros não precisam para depois vender como material em segunda-mão à porta da habitação onde a associação está instalada.
Cá em casa é já usual, pelo menos uma vez por ano, pedirmos que venham com o seu atrelado para levarem algumas coisas que já não têm qualquer utilidade para nós mas que podem ser vendidas e transformadas nos tão necessários fundos para que a referida associação perdure. Acontece que só este Verão já vieram mais de cinco vezes e em todas elas encheram o atrelado. E irão voltar pois o trabalho ainda não terminou.
Da extensa lista destacamos armários de roupa, televisores antigos, bicicletas, trotinetas, variado equipamento eléctrico e electrónico, livros, filmes, jogos e muita roupa. Roupa de criança e adulto. Na primeira carrada que levaram, até uma pia antiga de lavar a roupa foi na leva, e também uma esplanada completa que tínhamos na nossa foodtruck, a qual já não precisamos e estava a ocupar espaço. Este conjunto foi colocado à venda no mesmo dia e nem uma hora esteve na associação, informou-nos o responsável quando voltou para buscar mais coisas.
É incrível o que se acumula ao longo de meia-dúzia de anos. Quer dizer, grande parte do que demos era dos tempos da minha juventude, logo com algumas dezenas de anos. Contudo, no que respeita à roupa, esta foi comprada nos últimos cinco anos que passámos em Portugal. É inacreditável o dinheiro que se gasta e a quantidade de pertences que vamos guardando nos armários e acabam no esquecimento.
Também entre as doações foi grande parte da minha biblioteca de literatura de Macau, que deste modo quis “passar” para outras pessoas. Neste conjunto foram todos os livros de Josué da Silva, Henrique de Senna Fernandes, Monsenhor Manuel Teixeira, Estima de Oliveira e do professor Silveira Machado, os quais fui acumulando ao longo dos primeiros anos em Macau, assim como muitas das publicações oficiais dos anos que antecederam a transferência de soberania.
Felizmente que há associações como esta (Arca da Vida) que estão sempre dispostas a receber qualquer tipo de bens, com o objectivo de voltarem a colocá-los no mercado e assim autofinanciarem-se, sem estarem completamente dependentes das verbas que tardam a chegar do Governo.
Esta associação particular de solidariedade social tem a sede na Maia, mas é em Mira que faz o seu trabalho mais importante e recolhe grande parte das doações que revende posteriormente. Este ano celebra o vigésimo aniversário da abertura da delegação de Mira; como é seu apanágio, será sem qualquer pompa porque o trabalho é o mais importante. Nós é que não quisemos deixar passar em branco esta data e o trabalho que exemplarmente realizam.
Aqui em casa sempre tivemos, desde que me lembro, o hábito de doar coisas. Raramente algo que possa ainda ser usado acaba no balde do lixo. Não sendo nós uma família abastada, longe disso, nunca nos abstivemos de tentar ajudar quem tem ainda menos do que nós – em especial, ajudar quem todos os dias tenta ajudar outros a ultrapassar dificuldades.
Aliás, ainda hoje, todos os dias, desde que me lembro, o meu pai tem como passatempo levar comida aos cães e gatos de rua que infelizmente abundam nesta zona sem que as autoridades, aparentemente, se preocupem com isso. Além dos cães e dos gatos, também se dedica a alimentar patos. Com muita satisfação nossa, está a incutir este hábito na pequena Maria que de tempos a tempos lá vai com o avô levar pão aos patos e ração e água aos cães e gatos de rua.
João Santos Gomes