«– Tenho sede»… numa viagem de comboio
A primeira quinzena de Setembro está carregada de recordações da Madre Teresa de Calcutá. Foi numa viagem de comboio, à noite, no dia 10 de Setembro de 1946, de Calcutá para Darjeeling, na Índia, que Jesus a chamou a fundar as Missionárias da Caridade. Faleceu a 5 de Setembro de 1997 e portanto a Igreja celebra anualmente a sua festa neste aniversário. No entanto, como foi canonizada pelo Papa Francisco a 4 de Setembro de 2016, o dia 4 junta-se ao dia 5 e a festa dura dois dias. Como nasceu a 26 de Agosto, preparamo-nos com antecedência para a sua festa e prolongamo-la até 10 de Setembro.
Muitos associam a Madre Teresa à miséria da Índia, mas a verdade é que as Missionárias da Caridade, ou Irmãs da Madre Teresa, como muita gente lhes chama, têm muito trabalho em Lisboa, em Nova Iorque, em Roma, em Moscovo…, onde as sociedades desenvolvidas abandonam os seus moribundos, os seus filhos não desejados. Claro que há uma enorme diferença estética. A morte de um miserável nas vielas da Índia é menos bela que a eutanásia ou o aborto num país rico, um cadáver à porta de casa incomoda mais que um idoso abandonado num lugar onde ninguém o ouve. Mas talvez o desprezo pela dignidade humana não seja diferente.
Naquele comboio, aos solavancos, em 1946, Nosso Senhor gravou a fogo na alma da Madre Teresa umas palavras que disse na Cruz, «I thrist» (tenho sede), e fê-la compreender que não pedia uma bebida – aliás, um soldado interpretou assim estas palavras e Jesus agradeceu mas declinou a oferta: Jesus tinha ânsias de amor, de gente que amasse.
Esta sede é uma das mensagens mais fortes do Cristianismo. Deus veio à Terra para nos dizer que ser homem ou mulher é um dom grandioso, que vale a pena viver, a ponto de que Ele próprio deu a vida por nós, porque nos aprecia sem limites, divinamente. Haverá forma mais eloquente de falar da dignidade humana?
Nas capelas das Missionárias da Caridade costuma estar escrito «I thrist», como um lema cheio de ressonâncias humanas e divinas. Nunca apreciaremos bastante que Deus aplique a Si esta urgência tão vital e tão humana de quem sente falta de água.
A vida das Missionárias da Caridade pretende ser uma resposta, talvez inesperada para muita gente, a esta sede de Deus. João Paulo II, que conheceu muito bem a Madre Teresa e a estimava muito, disse que a parte mais importante da resposta dela e das Irmãs à sede de Deus era a oração: «A sua missão começava todos os dias, antes do amanhecer, diante da Eucaristia. No silêncio da contemplação, a Madre Teresa de Calcutá sentia ressoar o grito de Jesus na Cruz: “I thrist”, tenho sede. Este grito, recolhido na profundidade do seu coração, impulsionava-a a ir pelas ruas de Calcutá e de todos os subúrbios do mundo, em busca de Jesus no pobre, no abandonado e no moribundo». João Paulo II tocou no ponto importante: «em busca de Jesus».
Um colaborador da comunidade de Lisboa descreve-as como «contemplativas no coração do mundo, levam Jesus ao mundo e o mundo a Jesus, amam até que doa, estão disponíveis e levantam-se de noite para ver os seus doentes, para, como uma Mãe, dar a mão e fazer companhia a um doente mais grave; têm bom humor – esse admirável atributo dos Santos –, são alegres, pacíficas, compreensivas, simples, afectuosas, resolvem as dificuldades com bom senso e sentido prático».
A Irmã Frances, superiora da comunidade de Lisboa, especifica a técnica: «Nalguns sítios onde o trabalho é particularmente desafiante, duas Irmãs ficam em casa em adoração ao Santíssimo Sacramento, a interceder pelas outras duas Irmãs que saem».
Para as Irmãs da Madre Teresa, Deus não é o obstáculo à felicidade humana, Deus é Quem mais anseia que cada homem e mulher seja plenamente feliz. E consideram também que o caminho para encher este nosso mundo de amor começa diante da Eucaristia, olhando com devoção para Deus ali presente.
Olho para uma pequena relíquia da Madre Teresa que as Irmãs me ofereceram e penso que levo na carteira uma preciosidade. Ela própria se definia: «De sangue, sou albanesa. De cidadania, indiana. No referente à fé, sou freira católica. Pela minha vocação, pertenço ao mundo. No que se refere ao meu coração, pertenço totalmente ao Coração de Jesus». Não é pouca coisa. Peço a Nosso Senhor que nunca perca a carteira.
José Maria C.S. André
Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa