DAVID NEUHAUS, SJ, UMA VOZ CONTRA O GENOCÍDIO

PADRE DAVID NEUHAUS, SJ, UMA VOZ ISRAELITA CONTRA O GENOCÍDIO

«É vergonhoso que não se responsabilize os fomentadores desta guerra»

Num mundo cada vez mais mercenário, insensível e egoísta, felizmente subsistem corajosas vozes que não têm receio do peso das palavras. É o caso do jesuíta israelita David Neuhaus, nascido na África do Sul, filho de pais judeus-alemães que fugiram da Alemanha na década de 1930. «Após seis meses de bombardeamentos é vergonhoso que ninguém tenha conseguido responsabilizar os fomentadores desta guerra», observa o sacerdote, estudioso das Sagradas Escrituras, numa entrevista concedida a Gianni Valente, repórter da Agência FIDES.

O padre David Neuhaus, ex-vigário patriarcal para os Católicos de Língua Hebraica e para a Pastoral entre os Migrantes, dá assim testemunho da fé dos cristãos de Gaza, que no meio de tanta morte e desespero tiveram o ensejo de proclamar Cristo Ressuscitado no Domingo de Páscoa.

Triste e desoladora foi a Páscoa de Gaza, como se imagina. Muito o sofrimento; morte e destruição por toda a parte. No entanto, entre as imagens mais poderosas constam as dos cristãos da paróquia católica romana da Sagrada Família, na cidade de Gaza, que com «resiliência inabalável e fé radiante» celebraram as liturgias da Semana Santa. Foi preciso uma enorme coragem para estar ali, rodeado pelas ruínas de quase meio ano de bombardeamentos, ataques militares incessantes que provocaram tanta morte, destruição e desespero humano.

O padre Neuhaus lembra que a voz do Santo Padre tem sido «coerente e intransigente desde o início desta ronda de conflito». Francisco gritou repetidamente: «A guerra é uma derrota para todos». Mais recentemente, na sua mensagem pascal, acrescentou: «A guerra é sempre um absurdo». Desde a época do Papa João Paulo II, levantam-se questões sobre se pode haver uma “guerra justa” em tempos de armas de destruição maciça… É claro que os países envolvidos em guerras, e que as apoiam, não apreciam esta mensagem que coloca a vida humana acima das ideologias políticas e dos supostos interesses nacionais. O Papa Francisco não deixou de sublinhar também que a violência levou principalmente à morte de não combatentes, especialmente mulheres e crianças. Aqueles que querem que o Papa tome partido ficam frustrados com a sua recusa em fazê-lo.

Infelizmente, o actual conflito é apenas a fase mais recente de uma longa guerra que dura há décadas. Grande parte do nacionalismo judaico ainda se alimenta dos horrores da “Shoah”. Ainda há profunda raiva, tristeza e um sentimento de traição pelo facto de os judeus terem sido abandonados à sua sorte naqueles anos sombrios. Grande parte do nacionalismo palestiniano alimenta-se dos horrores da “Nakba”, a catástrofe palestiniana de 1948, e da sensação de que foram traídos e que se espera que desapareçam e dêem lugar aos judeus. «Chegou a hora de cada um [israelitas e palestinos] aceitar o outro, de perceber que o outro veio para ficar. Só esta base pode garantir uma vida partilhada baseada na igualdade e liberdade de cada um; igualdade e liberdade são os componentes básicos de uma justiça sem a qual não pode haver paz», conclui o jesuíta.

É importante lembrar que conflito em Israel/Palestina não é religioso. É antes o choque entre dois movimentos nacionais, ambos forjados no mundo conceptual do nacionalismo europeu do Século XIX. No entanto, ambos os movimentos nacionalistas se envolveram na apropriação, exploração e manipulação das tradições religiosas, a fim de mobilizar Deus para o seu lado. Os textos religiosos são arrancados do seu contexto histórico e espiritual, seja bíblico ou corânico, para falar ao nosso presente. Este uso impiedoso da religião e das Escrituras tem pouco a ver com Deus ou com valores espirituais, em vez disso glorifica a guerra e a morte. Como homens e mulheres religiosos, devemos resistir a este uso cínico da religião.

A releitura do documento de 2019 “Documento sobre a fraternidade humana para a paz mundial e a convivência em comum”, assinado pelo Papa Francisco e pelo Sheikh Ahmed al-Tayeb de Al-Azhar, é esclarecedor neste contexto: “As religiões nunca devem incitar a guerra, atitudes de ódio, hostilidade e extremismo, nem devem incitar à violência ou ao derramamento de sangue. Estas realidades trágicas são consequência de um desvio dos ensinamentos religiosos. Resultam de uma manipulação política das religiões e de interpretações feitas por grupos religiosos que, ao longo da história, aproveitaram o poder do sentimento religioso no coração de homens e mulheres para fazê-los agir de uma forma que nada tem a ver com a verdade da religião. Apelamos, portanto, a todos os envolvidos para que parem de usar as religiões para incitar o ódio, a violência, o extremismo e o fanatismo cego, e que se abstenham de usar o nome de Deus para justificar actos de assassinato, exílio, terrorismo e opressão”. Os líderes religiosos em Israel/Palestina e em todo o Médio Oriente fariam bem em meditar cuidadosamente este parágrafo antes de apoiar as campanhas militares dos Governos sob os quais vivem.

Joaquim Magalhães de Castro

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